O diletantismo de Fradique Mendes:
domingo, 9 de janeiro de 2022
O diletantismo - Eça de Queirós
Como identificar uma obra de arte - Eça de Queirós
“Nas manhãs de nevoeiro, numa rua de Londres, há dificuldade em distinguir se a sombra densa, que ao longe se empasta, é a estátua dum herói ou o fragmento dum tapume. Uma pardacenta ilusão submerge toda a cidade — e com espanto se encontra numa taverna, quem julgara penetrar num templo. Ora para a maioria dos espíritos, uma névoa igual flutua sobre as realidades da Vida e do Mundo. Daí vem que quase todos os seus passos são transvios, quase todos os seus juízos são enganos; e estes constantemente estão trocando o Templo e a Taverna. Raras são as visões intelectuais, bastante agudas e poderosas, para romper através da neblina e surpreender as linhas exactas, o verdadeiro contorno da Realidade. Eis o que eu queria tartamudear».
O amor platónico - Eça de Queirós
O AMOR PLATÓNICO
O dia de uma mulher de hoje em Lisboa (1871) - Eça de Queirós
O DIA DE UMA MULHER DE HOJE, EM LISBOA
terça-feira, 4 de janeiro de 2022
O artista é alguém sem cara - Boltanski - José Maçãs de Carvalho
A questão aqui passa muito pela receção e
apropriação por parte do leitor. O C. Boltanski diz uma coisa muito simples e
muito esclarecedora:
“O artista é alguém sem cara; é somente o
desejo de outros. O artista é como alguém em frente a um espelho e cada pessoa
que olha para o reflexo dirá “Ah sim, sou eu”. O artista deve falar da sua
aldeia e, assim, essa aldeia torna-se a aldeia de cada um.”
E pronto, assim esclarece-se a criação
artística, mesmo a mais autorreferencial.
José Maçãs de Carvalho
É a alegria que me comove, mais do que a tragédia - Miguel Esteves Cardoso
É a alegria que me comove, mais do que a tragédia.
Miguel Esteves Cardoso, 9/5/2014, Público
Bidault foi a Pisa
"Camaradas, Bidault (ministro francês dos Negócios Estrangeiros) foi a Pisa. E sabem, camaradas, o que ele, Bidault, viu em Pisa? Ele viu a torre, camaradas. E sabem como é que ele a viu, a torre, camaradas? Ele, Bidault, viu-a direita. E o que é que isso prova, camaradas? Isso prova, camaradas, que é ele, Bidault, que está torto." - discurso de um dirigente comunista, em 1952, segundo Gérard Genette.
Vicente - Miguel Torga
Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava:- a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.
Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.
A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados.
Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:
- Noé, onde está o meu servo Vicente?
Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.
Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante.
Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.
- Deve andar por aí...Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...
Nada.
- Vicente!...Ninguém o viu? Procurem-no!
Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.
- Vicente! Vicente! Em que sítio é que ele se meteu?
Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.
- Vicente fugiu...
- Fugiu? Fugiu como?
- Fugiu...Voou...
Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão
Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.
Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.
- Noé, onde está o meu servo Vicente?
Acordado do desmaio poltrão, trémulo e confuso, Noé tentou justificar-se.
- Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...
- Noé!...Noé!...
E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.
Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas -, dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.
Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?
Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?
Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravavam-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.
Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lés a lés como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo.
Terra! Nem planaltos, nem veigas, nem desertos. Nem mesmo a macicez tranquilizadora dum monte... Mas bastava. Para quantos o viam, o pequeno penhasco resumia a grandeza do mundo. Encarnava a própria realidade deles, até ali transfigurados em meros fantasmas flutuantes. Terra! Uma minúscula ilha de solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido.
Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra...Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?
Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.
Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada.
Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo.
Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino.
Ah, mas estavam "rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu!" E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania.
Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.
Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.
Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.
Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.
Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.
Um homem apaixonado - Karl Ove Knausgard
Se, e de um modo geral, todos os seis volumes deste complexo projeto romanesco são uma tentativa de resposta à pergunta "Quem eras tu quando não te lembravas que existias?", em "Um homem apaixonado" o que sobressai parece ser a procura da razão do acto de escrever e a definição de limites para a luta que é travada entre o tempo necessário para a escrita e o da dedicação aos filhos, que muitas vezes parecem ser inconciliáveis. Knausgard sente-se aprisionado na vida familiar - na sua recente função de pai, que o obriga a mudar fraldas e a passear os bebés sem lhe deixar tempo para escrita - e por vezes pensa em fugir; mas por outro lado sabe bem que aquela clausura lhe é essencial para poder chegar ao fim sem recear o passado. A vida familiar surge como uma necessidade mas, ao mesmo tempo, como impedimento ao exercício solitário da literatura. Por sentir, como pai, que a vida que vive não é a sua, a escrita passa por essa "luta" de tornar "sua" a vida que vive. "O que nada tinha a ver com a minha falta de vontade de limpar o chão ou de mudar fraldas, mas se passava a um nível mais fundamental: a vida à minha volta não tinha sentido, eu ansiava a todo o momento por me ver livre dela e, com efeito, mantinha-me sempre como que à distância. Portanto, a vida que eu vivia não era a minha própria vida. Tentava torná-la minha, essa era a minha luta".
Primavera Secreta - MEC
Na quarta-feira de manhã chegaram as primeiras chuvas. Depois do almoço voltou o sol. Numa rua de Almoçageme um homem disse "que dia bonito: choveu de manhã e de tarde está calor". As pessoas andavam ansiosas: nunca mais vinha a chuva para "levar o pó" acumulado ao longo do Verão. Para todas as plantas que ninguém rega e que dependem apenas do céu foi um banho de felicidade depois de dois meses de secura, seguido por uma secagem soalheira, mais deliciosa por terem as folhas molhadas. Na estrada que vai do Pé da Serra de Sintra à Malveira da Serra, seguindo a costa e as encostas, as ervas e os arbustos cintilavam, verdejantes. Para muitas espécies está a decorrer uma Primavera secreta, paralela ao acastanhamento do Outono. Há flores do fim de setembro, roxas e misteriosas.
Black Adder
Tens um intelecto de morsa e um refinamento de penico.
Somos tão parecidos como duas gotas de água diferentíssimas.Estou cansada como um cão sem pernas depois de subir a um monte.
Todas as manhãs a gazela - provérbio
"Todas as manhãs a gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o sol desponta o melhor é começares a correr"
Vissolela e Nendela - José Eduardo Agualusa
SOBRE CORCUNDAS E ELEIÇÕES - Léopold Sédar Senghor
Quero contar‐vos uma história africana. Havia numa aldeia remota uma jovem de rosto fino, tensa pele de tantã, voz grave de contralto, mãos de alísios, mãos que curam febres, pálpebras de penugem e de pétalas de aloendro, sobrancelhas secretas e puras como hieróglifos. Os cabelos eram como o fogo a rolar pelo mato à noite. Pérolas brilhavam como estrelas contra a sua pele noturna. Receio já ter utilizado uma ou outra destas imagens em poemas que publiquei enquanto vivia. Perdoem‐me. Inéditas ou não, são imagens que servem na perfeição para descrever a jovem da minha história. Vou chamar‐lhe Vissolela.
Apesar de todas as laboriosas imagens que usei acima para descrever Vissolela, a rapariga não encontrava pretendentes. Porquê? Pois, porque logo que os homens conseguiam afastar os olhos do seu belo rosto davam com a corcunda. Vissolela nascera com um morro de salalé a desfear‐lhe o perfil solene. Definhava ela, escondida a um canto, e entristeciam os pais. Então, certa tarde, chegou à aldeia um forasteiro. Era um homem aprumado, de palavras medidas e justas, olhos fundos e limpos como um céu de verão depois das chuvas. Sendo o primogénito os pais deram-lhe o nome de Nendela.
Nendela viu Vissolela. Viu-a cozinhar, viu-a varrer o terreiro com humilde zelo. Impressionou-o a dignidade daquela mulher, comoveu-o a noite azul do seu coração. Ao fim de alguns dias decidiu falar com os pais da moça. "Quero casar com a vossa filha", disse. O pai estranhou: "Não pode ser. Não temos nenhuma filha escorreita que te possamos entregar." Nendela apontou Vissolela: É aquela que eu quero."
Os pais concordaram, surpresos mas felizes com a sorte da filha. Nendela voltou alguns dias depois com cinco vacas - para o alembamento - e levou a rapariga. Nessa noite Vissolela chorou, um choro tristíssimo, que assustou o marido.
"Sou feia", lamentou-se. "Como podes gostar de mim?"
"Gosto de ti tal como és", assegurou-lhe Nendela. "Gosto tanto de ti que não consigo ver-te sofrer. Se te horroriza a esse ponto a tua corcunda deixa-me ficar eu com ela."
Mal terminou de dizer isto a corcunda passou para as suas costas e Vissolela endireitou-se incrédula, feliz, mulher de altas pernas, tronco esguio, doce pele de melaço. Durante alguns meses o casal foi feliz. Vissolela, porém, transformava-se. Já não gostava de ficar em casa, a cozinhar, a cuidar dos porcos e das galinhas, enquanto o marido ia fazer o serviço da lavra, caçar ou pescar.
Agora Vissolela passava muito tempo a entrançar o cabelo, a perfurar-se, a amaciar a pele com óleo de palma. Passou-se mais algum tempo e Vissolela começou a ser cortejada pelos homens da aldeia. Um deles encantou-a. Era um sujeito de natureza lábil, esbelto mas furtivo, como um guerreiro perdido nos altos agimos do sono. Disse-lhe o jovem: "O que faz uma mulher bela como tu com um aleijado? Deixa o teu marido e vem comigo." Vissolela concordou. Preparava-se para abandonar a sua casa quando Nendela apareceu, vindo da lavra. "Vou-me embora", disse ao marido. "Não suporto mais viver contigo, um aleijado." Nendela olhou-a com o coração desfeito. "Vai então", concordou, "mas não te esqueças de levar a tua corcunda." Ao dizer isto endireitou-se e no mesmo instante a horrível corcunda regressou às costas de Vissolela.
Foi assim que aconteceu.
in O LUGAR DO MORTO - JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
Contemporâneo - Giorgio Agamben
Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro.
Giorgio Agamben (filósofo), 2005
Apólogo da Vaca Lutadora - José Saramago
Apólogo da vaca lutadora
Retrato de Mónica - Sophia de Mello Breyner Andresen
RETRATO DE MÓNICA
Sophia de Mello Breyner Andresen
Contos Exemplares
Porto, Figueirinhas, 1996 (29ª ed.).
Aos quinze anos - MEC
Aos quinze anos, já o coração cresceu, mas ninguém repara. Não o deixam bater como devia. As crianças crescem e os adultos envelhecem. E o que faz o adolescente? Coitadinho, não tem hipótese: adolesce. Aos quinze anos, o mal é este: nem se é tratado como adulto (como se queria) nem se é tratado como criança (o que sempre consolaria). Não se é tratado. Ponto final. Os 15 anos são intratáveis. Os mais novos - a malta do armário, enfrentando o absurdo da puberdade - não têm nada, mas nada a ver. Os mais velhos olham para quem tem 15 anos como se olha para quem tem lepra. Restam apenas as outras pessoas com 15 anos, mas essas estão demasiado ocupadas com ter 15 anos para poderem reparar nas outras almas com as quais partilham tal aflição. Só apetece chorar. É o que se faz.
Do querido jardim do czar - Lev Tolstoi
"Da aldeia de Izmáilovo,
Do querido jardim do czar,O bravo falcão voou para fora,
Atrás dele corria o jovem caçador,
Chamando o falcão para a mão direita.
Responde-lhe o bravo falcão:
- Não soubeste manter-me na gaiola dourada,
Nem pousar-me na tua mão direita,
Agora vou para o mar azul,
Mato lá um cisne branco,
Como a carne doce do cisne."
Canção preferida do cossaco Lukachka,
In COSSACOS - Novela do Cáucaso, Lev Tolstoi
A ponderação - Carlos Martins
A ponderação é mariquinhas, não sabe amar. Faz contas e ajusta horários como quem procura uma lavandaria perto de casa, que seja rápida, que não deixe marcas.
Na ponderação não há falta de ar, não há gaguejos, mãos transpiradas, maus beijos, bons beijos, beijos.A ponderação é amor sem desmazelo, sem pele investida até ser sangue, sem invasões.
O amor novo não tem experiência nem ensaio, é desorientado, sem rede.
O amor novo é o único, não precisa de acontecer, como a arte, mas acontece porque não sabe parar, a ponderação é necessidade e existe porque há domingos à tarde.
Não há amor sem a possibilidade de cair
Uma cabana nos trópicos - Hector Abad Faciolince
Talvez isto tenha a ver com a minha vida nas montanhas nos trópicos, onde o clima perpétuo, sempre igual a si mesmo, parece negar a passagem do tempo. Aqui onde vivo, muito perto do equador, a 2300 metros acima do nível do mar, numa cabana de madeira nas montanhas, o campo e as árvores nunca deixam de ser verdes e a temperatura é sempre idêntica ao longo de todo o ano. Aqui o clima não se sente. Às vezes chove, mas não há dia em que não brilhe o sol, pelo menos um pouco, e eu olho para as minhas vacas (dez vacas) como se estivessem presas a um eterno presente. A única coisa que fazem todo o dia e todos os dias é comer enormes bocados de erva verde, que cresce todo o ano, silenciosa, e transformá-la em leite.
Diário X - Miguel Torga
Só há uma lepra humana pior do que o despotismo: a cobardia. A cobardia individual ou colectiva, a que recua diante da força ou diante dos factos. De maneira singular ou plural, aberta ou encobertamente, a vida faz-nos sempre a mesma exigência: o exercício quotidiano da coragem e do risco. E quando o medo nos tolhe, e nos negamos a essa prática salutar, perdemos, como parcelas ou como soma, aquela mínima dignidade que distingue a pessoa da rês e o grupo da manada.
E o medo tolheu-nos. Por todo o país só se vêem paralíticos, seres entorpecidos, que renunciaram a viver no terreiro da claridade afirmativa e vegetam no antro da obscuridade negativa. Prudentemente fechado no seu casulo, cada qual olha o vizinho como um inimigo, a quem não fala e a quem não quer ouvir. Falar, é denunciar-se; ouvir, é comprometer-se. E só ao nível da anedota constituímos uma nação. Apenas nesse baixo plano chalaceiro dialogamos e nos sentimos irmãos.Diário X (23.09.1966)
O escuro que te ilumina - José Riço Direitinho
É verdade que, depois de termos deixado calcificar a vida (assim como acontece com as torneiras que já não abrem nem fecham, só pingam durante a noite - nao, isto não é uma irónica metáfora sobre o sexo conjugal), precisamos quase sempre de um estímulo para ressuscitar. Então, ou o inventamos ou, sendo sortudos, ele vem ter connosco como uma aparição - talvez trajando de amarelo - que caminha devagar por entre arbustos de um jardim: e a nossa boca e os nossos olhos abrem-se de espanto como se presenciássemos o começo do mundo (que de certeza não terá sido mais milagroso).
Bailarinos - texto de Frederico Lourenço
Rapazes e ballet: o preconceito interno
Hoje, dei-me conta de uma tempestade no Instagram, onde sigo muitas personalidades internacionais do mundo do ballet (que é, como sabem os que me lêem, uma das minhas grandes paixões). Num programa televisivo nos EUA, alguém referiu de forma trocista o facto de o Príncipe George (filho de William e Kate) estar a ter aulas de ballet.
Todos sabemos o que está por trás dessa troça: a convicção, ainda mantida por tanta gente em 2019, de que os meninos que aprendem ballet desaprendem a sua «correcta» identidade heterossexual. Ballet - segundo esse estereótipo - é só para meninas e para gays. Pior: o ballet torna os meninos gays.
A ideia por trás desta paranóia é algo que nunca me deixa de surpreender: no fundo, no inconsciente de tanta gente, a homossexualidade masculina parece ser um chamamento tão aliciante que, se um rapaz não for daí desviado, inevitavelmente por aí enveredará. Para isso parece servir o futebol e os outros desportos; para isso parece servir a educação dos pais, que têm de incutir comportamentos certos de masculinidade. Por isso o ballet é um problema. Porque é um problema - continua a ser um problema em 2019 - quando um rapaz decide que quer aprender ballet.
Há bailarinos gays? Há.
Há bailarinos héteros? Há. (Hoje, se calhar, até são a maioria.)
A realidade profissional do ballet mostra-nos que os bailarinos se dividem, tal como o resto da Humanidade, em heterossexuais, homossexuais, bissexuais etc. Não é uma questão que tenha a ver com o ballet em si. Sempre houve os gays como Nureyev; sempre houve os héteros como Baryshnikov; e sempre será assim.
No entanto, é fácil sentirmos pena dos héteros, pelo modo como nunca se livram da fama/suspeita: ainda me lembro da primeira vez que ouvi o nome Mikhail Baryshnikov nos anos 70 e como a pessoa que o mencionou (a professora de ballet da minha irmã) disse que ele fingia ser um grande conquistador de mulheres (que conceito de heterossexualidade, «by the way»...), mas na verdade era um gay encapotado.
Quantos e quantos bailarinos héteros não têm sofrido desse estigma de que a sua heterossexualidade é um capa para esconder outra coisa? E quantos hoje em dia não sobre-compensam com a projecção de uma imagem de macho que quase se torna caricata? Enchem o seu Instagram com fotos de desportos «machos» (futebol, basquete, etc.), com carros de alta velocidade, com motos, com surf - com tudo o que possa desfazer a imagem convencionalmente associada a um homem que dança ballet.
Mas há aqui, a meu ver, uma homofobia subjacente que me incomoda. Tal como me incomoda o argumento das pessoas que querem defender o direito dos meninos a fazer ballet, dizendo que é uma actividade muito «masculina» e muito «atlética». Irrita-me sempre ouvir que «é preciso muita força, é preciso muito músculo», para saltar, para levantar as bailarinas, etc.
O argumento parece ser que, contrariamente ao suposto preconceito, o ballet masculino é, na verdade, algo de intrinsecamente heterossexual. Só porque a sua prática exige o atletismo e a força que, segundo esse ponto de vista, é garantia de heterossexualidade. Como se um homossexual não pudesse ser detentor de tais qualidades: atletismo e força.
Por isso, por muito que eu me solidarize com o bullying a que rapazes e homens heterossexuais são sujeitos por fazerem ballet, não posso deixar de me solidarizar ainda mais com os bailarinos gays.
Pois estes não só sofrem bullying da parte dos preconceituosos e ignorantes fora do universo do ballet. Sofrem bullying cada vez que alguém, no interior do mundo do ballet, vem a público dizer que o facto de um rapaz ou homem dançar ballet «não é o que as pessoas pensam», porque é algo de «muito másculo» e de «muito atlético».
Como se «muito másculo» é «muito atlético» fossem expressões antónimas de «gay».
O que este discurso quer dizer - o que a sobre-compensação dos bailarinos héteros projectando caricatamente imagem de macho quer dizer - é que, dentro do próprio mundo do ballet, o preconceito contra o bailarino gay (ainda) existe.
Os privilégios do verão - José Tolentino de Mendonça
Não raro, para olharmos a vida na sua amplidão temos de arriscar outros pontos de vista. Vivemos tão em cima dos acontecimentos, tão capturados pela sua intensidade que verdadeiramente não os conseguimos ver. Por isso é importante mudarmos de sítio, alterarmos o ponto de observação e nos distanciarmos, reencontrando assim as condições que a dada altura nos faltam para podermos ver aquilo que, talvez por estarmos demasiado perto, já não avistamos. O tracejado da vida é, como sabemos, repetitivo e habitudinário e desdobra-se como uma confortável constelação de rotinas. Certamente há nisso enormes vantagens, pois desse modo conseguimos realizar uma extensa quantidade de tarefas com um mínimo de esforço e corresponder agilmente, quase de olhos fechados, às exigências do quotidiano. O perigo maior, porém, é quando a força do hábito se substitui à força da vida. E quando o que se ganha em eficácia na gestão do imediato nos impede de escutar o que, em profundidade, nos habita. Nesse sentido, o período do verão pode corresponder a uma oportunidade. Não para um programa de evasão, como se a existência pudesse ser uma coisa em fuga ou uma tarefa inadiável. Mas como uma possibilidade real de encontro - na verdade, de reencontro e audição - da inteireza que somos.
Sermão das Lágrimas de São Pedro - Padre António Vieira
(excertos)
Notável criatura são os olhos! Admirável instrumento da natureza! Prodigioso artifício da Providência! Eles são a primeira origem da culpa, eles a primeira fonte da graça. São os olhos duas víboras metidas em duas covas, em que a tentação pôs o veneno, e a contrição a triaga. São duas setas com que o demónio se arma para nos ferir e perder, e são dois escudos com que Deus, depois de feridos; nos repara para nos salvar. Todos os sentidos do homem têm um só ofício; só os olhos têm dois. O ouvido ouve, o gosto gosta, o olfato cheira, o tato apalpa, só os olhos têm dois ofícios: ver e chorar. Estes serão os dois pólos do nosso discurso.
Ninguém haverá, se tem entendimento, que não deseje saber por que ajuntou a natureza no mesmo instrumento as lágrimas e a vista, e por que uniu na mesma potência o ofício de chorar e o de ver? O ver é a ação mais alegre; o chorar a mais triste. Sem ver, como dizia Tobias, não há gosto, porque o sabor de todos os gostos é o ver (Tob. 5, 12); pelo contrário, o chorar é o estilado da dor, o sangue da alma, a tinta do coração, o fel da vida, o líquido do sentimento. Por que ajuntou logo a natureza nos mesmos olhos dois efeitos tão contrários: ver e chorar? A razão e a experiência é esta: ajuntou a natureza a vista e as lágrimas, porque as lágrimas são conseqüência da vista; ajuntou a Providência o chorar com o ver, porque o ver é a causa do chorar. Sabeis por que choram os olhos? Porque veem.
Catecismo e Literatura - Alberto Manguel
A diferença entre catecismo e literatura é que o catecismo dá-nos respostas e a literatura dá-nos perguntas. Faz-nos pensar sobre as coisas? Apresenta-nos questões. Depois fazemos o que entendermos com elas. Podemos deixá-las de lado ou podemos meditar sobre elas.
Alberto Manguel em entrevista ao Observador.
Si quieres embriaguez, ¡acepta también la resaca! - Hermann Hesse
"Sé por qué es así. No es el vino que bebí ayer, ni que haya dormido en una mala cama, ni tampoco el tiempo lluvioso. Han aparecido unos demonios y han desafinado una por una todas las cuerdas de mi ser. Ha vuelto el temor, el miedo de las pesadillas infantiles, de los cuentos, del destino de los colegiales. El temor, el acoso de lo inalterable, la melancolía, el tedio. ¡Qué insulso es el mundo! ¡Qué horrible tener que levantarse mañana, volver a comer, volver a vivir! ¿Por qué hemos de vivir? ¿Por qué es el hombre tan tímido y bonachón? ¿Por qué no yacemos desde hace tiempo en el mar?
Mas ninguém sabe como é Deus - António Lobo Antunes
A certa altura há um adulto que pergunta à criança o que está a desenhar. Ela responde que está a desenhar Deus. "Mas ninguém sabe como é Deus"!" - diz-lhe o mais velho. "Quando acabar o desenho já sabem." - respondeu a criança.
Há uma citação que me tem ajudado imenso que é do general Montecuccoli (séc XVII): "é preciso agarrar a oportunidade pelos cabelos mas não esquecer que ela é careca."
António Lobo Antunes
Conto para o meu filho João de cada vez que ele tiver medo - Sérgio Godinho
CONTO PARA O MEU FILHO JOÃO DE CADA VEZ QUE ELE TIVER MEDO
Tinha também medo de outra coisa: de ser chamado medricas, porque isso era sinal de que todos reparavam no medo que ele tinha de tudo.
“Amanhã'”, disse ele, “Vou agarrar no medo, dar-lhe três voltas, enfiá-lo numa gaveta de um armário velho, comprar uma camioneta, e levar o armário para cima de um monte. E depois pôr umas pedras à volta e deitar fogo ao armário, e deixar o medo arder lá dentro.”
Amanhã, amanhã... Esse dia nunca mais chegava... Se ontem já passou e o hoje nunca deixa de ser hoje... “E, para mais, quem disse que o medo arde, como a madeira dos armários? Pode dar-se o caso de ser à prova de fogo...”
Assim sendo, ver-se-ia apenas no meio das cinzas fumegantes do armário um grande medo muito escuro, com três nós e uns dentes brancos, a rir-se do João. “Eh Eh Eh” (o João tremia só de pensar naquele riso).
Não, o melhor era pegar no armário, meter outra vez o medo numa gaveta, encher as outras gavetas de pesos, comprar a tal camioneta, transportar o armário até um penhasco à beira-mar e, pluf, atirá-lo à água. Com os pesos, o armário ficaria para sempre nas profundezas do oceano, e o medo deixaria de o atormentar. Iria para casa levezinho, assobiando uma canção que antes nunca tinha assobiado, por medo de desafinar.
Mas chegando a casa punha-se a pensar que, se calhar... Este se calhar é que estragava tudo. Se calhar, algum polvo podia passar pelo fundo do oceano e achar curioso ver ali um armário.
“Um armário?”, diria ele curioso.
“Talvez possa encontrar lá dentro umas luvas que me sirvam.” Abriria então uma a uma as gavetas e zás, de uma delas sairia a toda a velocidade o medo, e viria à tona flutuar.
Aí estava ele outra vez, pronto para nadar até à costa e ir vingar-se do João.
O João pensou muito a sério: “Se eu não der cabo deste medo enquanto é tempo, é ele que dá cabo de mim. E se eu o engolisse?”
Não, não era possível, como se pode engolir uma coisa que já está dentro de nós? Sim, porque o medo estava dentro dele. Ele bem o sentia, a apertar-lhe a garganta por dentro, a causar-lhe dores de barriga. Então, pelo contrário, tinha de o atirar todo para fora. “É isso. Atirá-lo todo para fora.” Começou a encher os pulmões de ar e de coragem e depois mandou um berro que fez estremecer a casa. Os gatos fugiram, os canários calaram-se, o avô quase acordou, as plantas fecharam-se e as louças tilintaram: e as telhas juntaram-se umas às outras como se fosse chegar a tempestade.
E o medo?
Ora, o medo, embora não tenha tido medo, olhou para o João com interesse. E o João olhou para o medo, também. Ficaram a olhar de frente um para o outro, como se fossem dois velhos desconhecidos que nunca se tinham visto.
Silêncio e respeito.
E depois o João falou, e disse '”Tu não tens medo de te afogar, não tens medo de te queimar nem tens medo que eu te possa berrar. Tu já és o medo, por que havias de ter medo? E eu só tenho medo de ti, porque penso que tu não fazes parte de mim. Mas tu fazes parte de mim, como os meus ossos e os meus pulmões. Tu és o meu medo, por que é que não havias de fazer parte de mim? A coragem não faz também parte de mim? E o riso e as lágrimas, não o fazem? De maneira que, olha, fica cá dentro e encontra um canto para te sentares. Mas cuidado: de cada vez que abusares vai haver guerra. Vou saltar, correr, espernear, lutar, falar, responder, perguntar, ou, muito simplesmente, pensar.
Silêncio e respeito. O João estava cansado de todo aquele seu discurso. Era um cansaço bom, como aquele que se tem depois de uma festa de anos, ou de um dia inteiro na praia.
Olhou à volta e não viu medo nenhum. Talvez tivesse voado pela janela aberta, ou ardesse para sempre no cimo de um monte. Oucontinuasse no fundo do mar, à espera de um polvo que ali nunca passará.
Sérgio Godinho
in 'O Pequeno Livro dos Medos'
O céu dos escritores somos nós, os leitores - Julieta Monginho
O céu dos escritores somos nós, os leitores.
No texto, na leitura, estamos todos juntosJulieta Monginho, a propósito da morte de Luís Sepúlveda
Às vezes depois de - Fernando Lopes
Às vezes depois de f*
por amor, ela ficava em silêncio com o olhar vago no vazio, fixando um ponto imaginário algures nos tecto, ou podia até ser que a visão trespassasse a laje e se fosse perder no íntimo espaço de que é feito o céu inatingível. E eu pensava que tal absorção ou suspensão se deveria ao orgasmo, ou até não, e que tal estado era de quem o tinha fingido na bela perfeição da ausência de sentimentos.
Também em silêncio, esperava até que ela regressasse à cama, aos lençóis malditos, e depois perguntava-lhe se estava bem. E claro está, que depois de tal frémito no corpo, a boca paralisa e nada diz, porque o coração ainda lhe bate próximo e deixa-a seca e a razão ausente não reclama o seu lugar.
Depois, o pior que podia fazer, com claro instinto malévolo, era perguntar-lhe se estaria a pensar noutro, no grande cabrão da sua vida. Obviamente ofendida, perguntava-me:
— Caramba, Fernando, que mais é preciso para que vejas?
E eu, que sempre admirei uma mulher que se deita com um homem apesar de saber que, secretamente, sente saudades de outro, ficava conjurado à minha sorte de ter nascido com a propensão de não sentir qualquer amor por mim mesmo, e de saber que aquela pergunta não era para ter resposta.
Devagar, roçava o meu rosto no seu peito, procurando a desculpa fácil através do calor do corpo, esse acto enganador e que nunca é suficiente mas que é o mais fácil de se traçar porque se pensa que o corpo consegue exprimir aquilo que as palavras não resgatam.
Ela rolava para cima de mim e perguntava-me: vamos foder outra vez?
E aquilo que eu não dizia, enquanto a beijava por todo o corpo alcançável e puxava-a para mim apertando-lhe as ancas contra mim era:
«Caramba, que mais é preciso para que eu veja?»
Nascer todas as manhãs - Miguel Torga
Nascer Todas as Manhãs
Apesar da idade, não me acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs.Miguel Torga, in "Diário (1982)"
E assim sou, fútil e sensível - Bernardo Soares
Bernardo Soares
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos...
L. do D.
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa: uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
- 310.Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos - Bernardo Soares
Fragmento 202, 14/9/1931 (dactilografado). Livro do Desassossego
Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vieram, nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do céu amplo, certos retoques de brisa fria que anunciavam o outono. Não era ainda o desverde da folhagem, ou o desprenderem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompanha a nossa sensação da morte externa, porque o há-de ser também a nossa. Era como um cansaço do esforço existente, um vago sono sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah, são tardes de uma tão magoada indiferença, que, antes que comece nas coisas, começa em nós o outono.
Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos, e o mesmo é verdade do verão ou do estio; mas o outono lembra, por o que é, o acabamento de tudo, e no verão ou no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos. Não é ainda o outono, não está ainda no ar o amarelo das folhas caídas ou a tristeza húmida do tempo que vai ser inverno mais tarde. Mas há um resquício de tristeza antecipada, uma mágoa vestida para a viagem, no sentimento em que somos vagamente atentos à difusão colorida das coisas, ao outro tom do vento, ao sossego mais velho que se alastra, se a noite cai, pela presença inevitável do universo.
Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do que usou sentimentos e luvas, do que falou da morte e da política local. Como é a mesma luz que ilumina as faces dos santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns terem sido santos e outros usadores de polainas.
No vasto redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz indolentemente o mundo inteiro, tanto faz os remos como os vestidos das costureiras, e as tranças das crianças louras vão no mesmo giro mortal que os ceptros que figuraram impérios. Tudo é nada, e no átrio do Invisível, cuja porta aberta mostra apenas, defronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que as remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e grandes, que formaram, para nós e em nós, o sistema sentido do universo. Tudo é sombra e pó mexido, nem há voz senão a do som que faz o que [o] vento ergue e arrasta, nem silêncio senão do que o vento deixa. Uns, folhas leves, menos presas de terra por mais leves, vão altas do rodopio do Átrio e caem mais longe que o círculo dos pesados. Outros, invisíveis quase, pó igual, diferente só se o víssemos de perto, faz cama a si mesmo no redemoinho. Outros ainda, miniaturas de troncos, são arrastados à roda e cessam aqui e ali. Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo e tudo o que fomos – lixo de estrelas e de almas – será varrido para fora da casa, para que o que há recomece.
Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anónima de tudo. O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lajes limpas que um sol angular doura de fim não sei onde.
Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz – tudo isso irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as crianças sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que também tive, tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do outono. Tudo no outono, sim, tudo no outono…
Matemática do Amor - Pastor Flores
E então ele aconchegou-se melhor nas suas dúvidas e voltou a fazer as contas. Se ele e ela eram como um, ambos seriam apenas metade do que poderiam ser.
Escribir es como drogarse - António Lobo Antunes
“Escribir”, dice Lobo Antunes, “es como drogarse, se empieza por puro placer, y acabas organizando tu vida como los drogados, en torno a tu vicio. Y ésa es mi vida. Hasta cuando sufro lo vivo como un desdoblamiento: el hombre está sufriendo, y el escritor está pensando en cómo aprovechar este sufrimiento para su trabajo.”
Enrique Vila-Matas, in El Mal de Montano, p. 195
Sobre la literatura - Enrique Vila-Matas
Como dice Magris: “Kafka sabía perfectamente que la literatura le alejaba del territorio de la muerte y le permitía comprender la vida, pero dejándole fuera.”.
...y cualquiera que haya leído a Kafka, conoce perfectamente “cuánta angustia excesiva por nada” (que decía Pessoa) hay en la literatura.
In El Mal de Montano, p. 301
www.enriquevilamatas.com
Hemingway por George Steiner
Estou a pensar num trecho do romance "The Sun Also Rises". Este título vem, obviamente do Livro de Eclesiastes. na Bíblia. Chamava-se "Fiesta" na edição inglesa. Dois amigos estão sentados no autocarro e julgam amar-se. Julgam ser inteiramente honestos um com o outro.
«Atravessámos a floresta para depois subir a encosta, um prado verde e
ondulado à nossa frente e montanhas escuras por trás, muito diferentes das
montanhas queimadas donde viemos. Eram montanhas arborizadas das quais as
nuvens escorregavam. O prado verde estendia-se, separado por vedações, com o
branco da estrada a brilhar por entre as árvores, cruzando o prado para Norte.
No cimo da encosta vimos os telhados vermelhos e as casas brancas de Burguete
dispersas pelo prado. Ao longe, no espinhaço da primeira montanha escura,
encontrava-se o telhado cinzento do mosteiro de Roncesvalles. Ali
é Roncevaux, disse eu. Onde? Lá ao longe. Onde começam as montanhas.
Está frio aqui, disse Bill. Estamos muito alto, disse eu. Pelo menos a 1200 metros.
Está um frio horrível, disse Bill.»
Roncevaux é um lugar onde, na canção medieval de Rolando, Rolando e os
seus amigos traídos por um deles, são mortos na emboscada dos Sarracenos. A
genialidade de Hemingway está no facto de não chegar a dizer isso. Só a palavra
"Roncevaux" nos diz que os dois amigos se trairão. A amizade está a
chegar ao fim. Depois a repetição. «Está frio, disse o Bill. Está um
frio horrível.» Naturalmente, está a falar-se do frio no coração
deles. Só um grande artista é capaz de dizer tudo sem dizer nada. A questão é
que os meus alunos de Oxford, de Cambridge, os de Genebra e os de Harvard, já
não sabem o que significa "Roncevaux". A próxima edição terá de
trazer uma nota de rodapé, que liquida tudo. Enquanto no tempo de Hemingway, com
o seu vasto público, era um romance muito popular e partiam do princípio que o
nome "Roncevaux"... não era preciso explicar. Dentro de pouco tempo o
nome "Elsinore" precisará de uma nota de rodapé. Não saberão nada,
nem o que é "La Mancha". Isto é assustador.
George Steiner
In, «Of Beauty and Consolation». 2000