Etiquetas

domingo, 9 de janeiro de 2022

O diletantismo - Eça de Queirós

 O diletantismo de Fradique Mendes:

“De sorte que dele bem se pode dizer que foi o devoto de todas as religiões, o partidário de todos os partidos, o discípulo de todas as filosofias — cometa errando através das ideias, embebendo-se convictamente nelas, de cada uma bebendo um acréscimo de substância, mas em cada uma deixando alguma coisa do calor e da energia do seu movimento pensante. Aqueles que imperfeitamente o conheciam classificavam Fradique como um diletante. […]
O diletante, com efeito, corre entre as ideias e os factos como as borboletas correm entre as flores, para pousar, retomar logo o voo estouvado, encontrando nessa fugidia mutabilidade o deleite supremo.
Fradique, porém, ia como a abelha, de cada planta pacientemente extraindo o seu mel: — quero dizer, de cada opinião recolhendo essa «parcela de verdade» que cada uma invariavelmente contém, desde que homens, depois de outros homens, a tenham fomentado com interesse ou paixão.”

A Correspondência de Fradique Mendes, Eça de Queirós

Como identificar uma obra de arte - Eça de Queirós

“Nas manhãs de nevoeiro, numa rua de Londres, há dificuldade em distinguir se a sombra densa, que ao longe se empasta, é a estátua dum herói ou o fragmento dum tapume. Uma pardacenta ilusão submerge toda a cidade — e com espanto se encontra numa taverna, quem julgara penetrar num templo. Ora para a maioria dos espíritos, uma névoa igual flutua sobre as realidades da Vida e do Mundo. Daí vem que quase todos os seus passos são transvios, quase todos os seus juízos são enganos; e estes constantemente estão trocando o Templo e a Taverna. Raras são as visões intelectuais, bastante agudas e poderosas, para romper através da neblina e surpreender as linhas exactas, o verdadeiro contorno da Realidade. Eis o que eu queria tartamudear».


Excerto de uma pretensa carta de Fradique Mendes a Antero de Quental,
in “A Correspondência de Fradique Mendes”, Eça de Queirós.

O amor platónico - Eça de Queirós

 O AMOR PLATÓNICO

Sabemos o que sente o homem que ama platonicamente, mas raramente pensamos no que sentirá a mulher, quando se apercebe de que é amada platonicamente.
“Só a porção de Matéria que há no homem faz com que as mulheres se resignem à incorrigível porção de Ideal, que nele há também — para eterna perturbação do Mundo. O que mais prejudicou Petrarca, aos olhos de Laura, foram os Sonetos. E quando Romeu, já com um pé na escada de seda, se demorava, exalando o seu êxtase em invocações à Noite e à Lua — Julieta batia os dedos impacientes no rebordo do balcão, e pensava: «Ai, que palrador que és, filho dos Montaigus!». Este detalhe não vem em Shakespeare — mas é comprovado por toda a Renascença.”

(in A Correspondência de Fradique Mendes, Eça de Queirós)

O dia de uma mulher de hoje em Lisboa (1871) - Eça de Queirós

 O DIA DE UMA MULHER DE HOJE, EM LISBOA

“Tome V. uma mulher de hoje, em Lisboa por exemplo, e siga-a durante o seu dia. Ergue-se pela manhã, embrulha-se numa robe de chambre e encontra logo nas simples ordens a dar as mil complicações da civilização. É o candeeiro de gás que tem um escape e que é necessário mandar consertar; um telegrama a expedir por causa de um parente que chega no paquete da Madeira; um recado a uma amiga para combinar a hora a que ambas irão à Câmara ouvir falar o Rufino; depois, tem que organizar o menu, porque há amigos a jantar; arranjar flores da Praça da Figueira, fazer almoçar e seguir os rapazes para o liceu; vigiar a criada que anda a espanejar os bibelots na sala; depois, há ainda o Diário de Notícias a percorrer e o Correio da Manhã a ler, a fechar-se no quarto para escrever a sua correspondência, e por último tratar da questão do criado, que se despediu por birra com o cozinheiro... Só então se pode ocupar da sua toilette, e finalmente vai almoçar. Às duas horas chega a amiga, e, metidas numa tipóia, lá vão ambas para as Câmaras. Aí, sessão tumultuosa, eloquência do Rufino, aplausos, olhadelas aos deputados, tagarelice, rosa divina nos intervalos. Finda a sessão, vai até à Baixa, dá uma volta pela Avenida, entra em várias lojas, sobe à modista, e, à última hora, apressa-se para casa onde a esperam mais cuidados domésticos: é uma nova discussão com o cozinheiro, um prato que é preciso substituir e todas as graves preocupações da toilette para o jantar. Por fim, encontra-se à mesa entre os seus convidados: sorrisos, conversa, discussão sobre política, notícias, cancãs, boatos, maledicência. Os homens acendem os charutos — e seguem todos para o teatro, a ouvir a nova opereta. À uma da madrugada, volta sonolenta para casa: chá, romance para adormecer — e marido roncando ao lado, com um lenço de seda amarrado na cabeça...”
Correspondência de Fradique Mendes, Eça de Queirós

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O artista é alguém sem cara - Boltanski - José Maçãs de Carvalho

A questão aqui passa muito pela receção e apropriação por parte do leitor. O C. Boltanski diz uma coisa muito simples e muito esclarecedora:

“O artista é alguém sem cara; é somente o desejo de outros. O artista é como alguém em frente a um espelho e cada pessoa que olha para o reflexo dirá “Ah sim, sou eu”. O artista deve falar da sua aldeia e, assim, essa aldeia torna-se a aldeia de cada um.” 

E pronto, assim esclarece-se a criação artística, mesmo a mais autorreferencial.


José Maçãs de Carvalho 


É a alegria que me comove, mais do que a tragédia - Miguel Esteves Cardoso

 É a alegria que me comove, mais do que a tragédia.


Miguel Esteves Cardoso, 9/5/2014, Público 

Bidault foi a Pisa

"Camaradas, Bidault (ministro francês dos Negócios Estrangeiros) foi a Pisa. E sabem, camaradas, o que ele, Bidault, viu em Pisa? Ele viu a torre, camaradas. E sabem como é que ele a viu, a torre, camaradas? Ele, Bidault, viu-a direita. E o que é que isso prova, camaradas? Isso prova, camaradas, que é ele, Bidault, que está torto." - discurso de um dirigente comunista, em 1952, segundo Gérard Genette.


"Um partido político é uma organização construída de maneira a exercer uma pressão colectiva sobre o pensamento de cada um dos seus membros."

"O único fim de um partido é o seu próprio crescimento, sem nenhum limite. Todo o partido é totalitário em germe e em aspiração."

Simone weill

El amor - Jacques Lacan

 El amor es dar lo que no se tiene a alguien que no es. 

Jacques Lacan

Vicente - Miguel Torga

           Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados no mesmo destino -, apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava:- a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.

           Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.

           A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados.

           Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:

           - Noé, onde está o meu servo Vicente?

           Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.

           Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante.

           Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.

            - Deve andar por aí...Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...

           Nada.

            - Vicente!...Ninguém o viu? Procurem-no!

           Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.

            - Vicente! Vicente! Em que sítio é que ele se meteu?

            Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.

            - Vicente fugiu...  

            - Fugiu? Fugiu como?

            - Fugiu...Voou...

            Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão

            Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.

            Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.

             - Noé, onde está o meu servo Vicente?

             Acordado do desmaio poltrão, trémulo e confuso, Noé tentou justificar-se.

             - Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...

             - Noé!...Noé!...

             E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.

             Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas -, dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.

             Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?

             Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?

             Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravavam-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.

             Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lés a lés como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo. 

             Terra! Nem planaltos, nem veigas, nem desertos. Nem mesmo a macicez tranquilizadora dum monte... Mas bastava. Para quantos o viam, o pequeno penhasco resumia a grandeza do mundo. Encarnava a própria realidade deles, até ali transfigurados em meros fantasmas flutuantes. Terra! Uma minúscula ilha de solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido.

              Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra...Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?

               Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.

  Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada.

  Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo.

  Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino.

  Ah, mas estavam "rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu!" E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania.

 Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.

 Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.

 Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.

 Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.

 Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.

Um homem apaixonado - Karl Ove Knausgard

Se, e de um modo geral, todos os seis volumes deste complexo projeto romanesco são uma tentativa de resposta à pergunta "Quem eras tu quando não te lembravas que existias?", em "Um homem apaixonado" o que sobressai parece ser a procura da razão do acto de escrever e a definição de limites para a luta que é travada entre o tempo necessário para a escrita e o da dedicação aos filhos, que muitas vezes parecem ser inconciliáveis. Knausgard sente-se aprisionado na vida familiar - na sua recente função de pai, que o obriga a mudar fraldas e a passear os bebés sem lhe deixar tempo para escrita - e por vezes pensa em fugir; mas por outro lado sabe bem que aquela clausura lhe é essencial para poder chegar ao fim sem recear o passado. A vida familiar surge como uma necessidade mas, ao mesmo tempo, como impedimento ao exercício solitário da literatura. Por sentir, como pai, que a vida que vive não é a sua, a escrita passa por essa "luta" de tornar "sua" a vida que vive. "O que nada tinha  a ver com a minha falta de vontade de limpar o chão ou de mudar fraldas, mas se passava a um nível mais fundamental: a vida à minha volta não tinha sentido, eu ansiava a todo o momento por me ver livre dela e, com efeito, mantinha-me sempre como que à distância. Portanto, a vida que eu vivia não era a minha própria vida. Tentava torná-la minha, essa era a minha luta".

Primavera Secreta - MEC

Na quarta-feira de manhã chegaram as primeiras chuvas. Depois do almoço voltou o sol. Numa rua de Almoçageme um homem disse "que dia bonito: choveu de manhã e de tarde está calor". As pessoas andavam ansiosas: nunca mais vinha a chuva para "levar o pó" acumulado ao longo do Verão. Para todas as plantas que ninguém rega e que dependem apenas do céu foi um banho de felicidade depois de dois meses de secura, seguido por uma secagem soalheira, mais deliciosa por terem as folhas molhadas. Na estrada que vai do Pé da Serra de Sintra à Malveira da Serra, seguindo a costa e as encostas, as ervas e os arbustos cintilavam, verdejantes. Para muitas espécies está a decorrer uma Primavera secreta, paralela ao acastanhamento do Outono. Há flores do fim de setembro, roxas e misteriosas.

Fomos à praia. A água estava só um pouco mais quente do que o ar. Vimos três arco-íris no céu. Apesar dos vestígios das barbaridades do Verão, devolvidos pelo vento de Sul, a água estava mais clara e mais leve do que é costume. Era da água doce e novinha lá caída durante a manhã. O oceano tinha sido diluído e adoçado. As duas águas ainda não estavam habituadas uma à outra: ainda estavam a conhecer-se, antes de se misturarem.
Não estava mais ninguém dentro de água. O dia tinha sido classificado "de chuva", só porque tinha chovido de manhã. Mas tornou-se numa boa tarde de praia. As primeiras chuvas são sempre bem-vindas. As outras, que começaram hoje, já não sei.

Miguel Esteves Cardoso, Público, 27 de setembro de 2013

Black Adder

Tens um intelecto de morsa e um refinamento de penico.

Somos tão parecidos como duas gotas de água diferentíssimas.

Estou cansada como um cão sem pernas depois de subir a um monte.

Todas as manhãs a gazela - provérbio

"Todas as manhãs a gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o sol desponta o melhor é começares a correr" 

Provérbio

Vissolela e Nendela - José Eduardo Agualusa

SOBRE CORCUNDAS E ELEIÇÕES -  Léopold Sédar Senghor

Quero contar‐vos uma história africana. Havia numa aldeia remota uma jovem de rosto fino, tensa pele de tantã, voz grave de contralto, mãos de alísios, mãos que curam febres, pálpebras de penugem e de pétalas de aloendro, sobrancelhas secretas e puras como hieróglifos. Os cabelos eram como o fogo a rolar pelo mato à noite. Pérolas brilhavam como estrelas contra a sua pele noturna. Receio já ter utilizado uma ou outra destas imagens em poemas que publiquei enquanto vivia. Perdoem‐me. Inéditas ou não, são imagens que servem na perfeição para descrever a jovem da minha história. Vou chamar‐lhe Vissolela.

Apesar de todas as laboriosas imagens que usei acima para descrever Vissolela, a rapariga não encontrava pretendentes. Porquê? Pois, porque logo que os homens conseguiam afastar os olhos do seu belo rosto davam com a corcunda. Vissolela nascera com um morro de salalé a desfear‐lhe o perfil solene. Definhava ela, escondida a um canto, e entristeciam os pais. Então, certa tarde, chegou à aldeia um forasteiro. Era um homem aprumado, de palavras medidas e justas, olhos fundos e limpos como um céu de verão depois das chuvas. Sendo o primogénito os pais deram-lhe o nome de Nendela.

Nendela viu Vissolela. Viu-a cozinhar, viu-a varrer o terreiro com humilde zelo. Impressionou-o a dignidade daquela mulher, comoveu-o a noite azul do seu coração. Ao fim de alguns dias decidiu falar com os pais da moça. "Quero casar com a vossa filha", disse. O pai estranhou: "Não pode ser. Não temos nenhuma filha escorreita que te possamos entregar." Nendela apontou Vissolela: É aquela que eu  quero."

Os pais concordaram, surpresos mas felizes com a sorte da filha. Nendela voltou alguns dias depois com cinco vacas - para o alembamento - e levou a rapariga. Nessa noite Vissolela chorou, um choro tristíssimo, que assustou o marido.

"Sou feia", lamentou-se. "Como podes gostar de mim?"

"Gosto de ti tal como és", assegurou-lhe Nendela. "Gosto tanto de ti que não consigo ver-te sofrer. Se te horroriza a esse ponto a tua corcunda deixa-me ficar eu com ela."

Mal terminou de dizer isto a corcunda passou para as suas costas e Vissolela endireitou-se incrédula, feliz, mulher de altas pernas, tronco esguio, doce pele de melaço. Durante alguns meses o casal foi feliz. Vissolela, porém, transformava-se. Já não gostava de ficar em casa, a cozinhar, a cuidar dos porcos e das galinhas, enquanto o marido ia fazer o serviço da lavra, caçar ou pescar.

Agora Vissolela passava muito tempo a entrançar o cabelo, a perfurar-se, a amaciar a pele com óleo de palma. Passou-se mais algum tempo e Vissolela começou a ser cortejada pelos homens da aldeia. Um deles encantou-a. Era um sujeito de natureza lábil, esbelto mas furtivo, como um guerreiro perdido nos altos agimos do sono. Disse-lhe o jovem: "O que faz uma mulher bela como tu com um aleijado? Deixa o teu marido e vem comigo." Vissolela concordou. Preparava-se para abandonar a sua casa quando Nendela apareceu, vindo da lavra. "Vou-me embora", disse ao marido. "Não suporto mais viver contigo, um aleijado." Nendela olhou-a com o coração desfeito. "Vai então", concordou, "mas não te esqueças de levar a tua corcunda." Ao dizer isto endireitou-se e no mesmo instante a horrível corcunda regressou às costas de Vissolela.

Foi assim que aconteceu.

in O LUGAR DO MORTO - JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

 

Contemporâneo - Giorgio Agamben

Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro.


Giorgio Agamben (filósofo), 2005

Apólogo da Vaca Lutadora - José Saramago

Apólogo da vaca lutadora


Foram doze dias e doze noites nuns montes na Galiza, com frio, e chuva, e gelo, e lama, e pedras como navalhas, e mato como unhas, e breves intervalos de descanso, e mais combates e investidas, e uivos, e mugidos. É a história de uma vaca rodeada de lobos durante doze dias e doze noites, e foi obrigada a defender-se e a defender o filho. Poderemos imaginar esta longuíssima batalha, esta agonia de viver no limiar da morte, de ter de lutar por si mesma e por um animalzinho débil que não sabe ainda valer-se? Um círculo de dentes, de goelas abertas, as arremetidas bruscas, as cornadas que não podem falhar. E também aqueles momentos em que o vitelo procurava as tetas da mãe, e sugava lentamente, enquanto os lobos se aproximavam, de espinhaço raso e orelhas aguçadas.
Não imaginemos mais, que não podemos. Digamos agora que ao fim dos doze dias a vaca foi encontrada e salva, mais o vitelo, e levados em glória para a aldeia, como heróis atrasados daquelas antigas histórias que se diziam às crianças para que aprendessem lições de coragem e de sacrifício. Mas este conto é de tal maneira exemplar, que não acaba aqui: vai continuar por mais dois dias, ao fim dos quais, porque se tornara brava, porque aprendera a defender-se, porque ninguém podia já dominá-la ou sequer aproximar-se dela, a vaca foi morta. 
Mataram-na, não os lobos que em doze dias vencera, mas os mesmos homens que a haviam salvo, talvez o próprio dono, incapaz de perceber que, tendo aprendido a lutar, aquele conformado e pacífico animal não poderia parar nunca mais.

José Saramago, A bagagem do viajante: crónicas.

Retrato de Mónica - Sophia de Mello Breyner Andresen

 RETRATO DE MÓNICA  

Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicurascaixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.

Sophia de Mello Breyner Andresen 
Contos Exemplares

Porto, Figueirinhas, 1996 (
29ª ed.).

Aos quinze anos - MEC

             Aos quinze anos, já o coração cresceu, mas ninguém repara. Não o deixam bater como devia. As crianças crescem e os adultos envelhecem. E o que faz o adolescente? Coitadinho, não tem hipótese: adolesce. Aos quinze anos, o mal é este: nem se é tratado como adulto (como se queria) nem se é tratado como criança (o que sempre consolaria). Não se é tratado. Ponto final. Os 15 anos são intratáveis. Os mais novos - a malta do armário, enfrentando o absurdo da puberdade - não têm nada, mas nada a ver. Os mais velhos olham para quem tem 15 anos como se olha para quem tem lepra. Restam apenas as outras pessoas com 15 anos, mas essas estão demasiado ocupadas com ter 15 anos para poderem reparar nas outras almas com as quais partilham tal aflição. Só apetece chorar. É o que se faz.

Chora-se muito. Aos 15 anos tudo é muito importante. É-se uma pessoa nova pela primeira e única vez na vida e o mundo, difícil e grande, percebe-se e faz-se pesar tal e qual ele é. (A partir dos 16 anos já não se aguenta e finge-se que é mais fácil ou mais pequeno). Aos 15 anos tudo é muito tudo, e é tudo ao mesmo tempo. Há muitas coisas que se querem muito e sofre-se muito por não as ter e brada aos céus o quanto se precisa realmente delas e parece impossível que ninguém perceba. E é incrível como toda a gente se junta para nos impedir de alcançá-las. E é muito triste saber que há-de ser assim durante toda a vida, que é quando dura ter 15 anos. Mas a luta continua.

Aos 15 anos, tudo é muito, simplesmente. Qual simplesmente! Complicadamente. Tudo é muitíssimo. É preciso muito e é muito preciso. É tudo muito lindo e muito difícil e muito injusto e muito urgente e pronto - será assim tão difícil de perceber? O mundo é mesmo como se vê quando se tem 15 anos, só que acabamos por desistir de vê-lo assim, porque custa tanto (...)

Do querido jardim do czar - Lev Tolstoi

 "Da aldeia de Izmáilovo,

Do querido jardim do czar,
O bravo falcão voou para fora,
Atrás dele corria o jovem caçador,
Chamando o falcão para a mão direita.
Responde-lhe o bravo falcão:
- Não soubeste manter-me na gaiola dourada,
Nem pousar-me na tua mão direita,
Agora vou para o mar azul,
Mato lá um cisne branco,
Como a carne doce do cisne."

Canção preferida do cossaco Lukachka,
In COSSACOS - Novela do Cáucaso, Lev Tolstoi

A ponderação - Carlos Martins

 A ponderação é mariquinhas, não sabe amar. Faz contas e ajusta horários como quem procura uma lavandaria perto de casa, que seja rápida, que não deixe marcas.

Na ponderação não há falta de ar, não há gaguejos, mãos transpiradas, maus beijos, bons beijos, beijos.
A ponderação é amor sem desmazelo, sem pele investida até ser sangue, sem invasões.
O amor novo não tem experiência nem ensaio, é desorientado, sem rede.
O amor novo é o único, não precisa de acontecer, como a arte, mas acontece porque não sabe parar, a ponderação é necessidade e existe porque há domingos à tarde.
Não há amor sem a possibilidade de cair

Uma cabana nos trópicos - Hector Abad Faciolince

Talvez isto tenha a ver com a minha vida nas montanhas nos trópicos, onde o clima perpétuo, sempre igual a si mesmo, parece negar a passagem do tempo. Aqui onde vivo, muito perto do equador, a 2300 metros acima do nível do mar, numa cabana de madeira nas montanhas, o campo e as árvores nunca deixam de ser verdes e a temperatura é sempre idêntica ao longo de todo o ano. Aqui o clima não se sente. Às vezes chove, mas não há dia em que não brilhe o sol, pelo menos um pouco, e eu olho para as minhas vacas (dez vacas) como se estivessem presas a um eterno presente. A única coisa que fazem todo o dia e todos os dias é comer enormes bocados de erva verde, que cresce todo o ano, silenciosa, e transformá-la em leite.

Nas montanhas dos Andes, de onde escrevo, o verde é de todas as cores e para chegar ao mar necessito pelo menos de uma hora de avião ou 12 de carro. O mar está muito longe. O mundo está muito longe. Às vezes vêm amigos ou uma amiga, os meus filhos, e falamos e caminhamos. Não vejo televisão nem ouço rádio: o mundo chega-me pela Internet. Há muito silêncio, há pássaros, há água cristalina que cai das encostas. Este é o meu estilo de vida e de escrita. Sinto-me fora da terra e fora do tempo. O único indício de que o tempo passa é que às vezes morre uma vaca e às vezes nasce um bezerro. Também porque, na minha cabeça, um pêlo negro é substituído por um pêlo branco. 
Sinto que pouco a pouco me desvaneço e parece que um dia vou voltar a ser transparente: um vazio mental...

Diário X - Miguel Torga

Só há uma lepra humana pior do que o despotismo: a cobardia. A cobardia individual ou colectiva, a que recua diante da força ou diante dos factos. De maneira singular ou plural, aberta ou encobertamente, a vida faz-nos sempre a mesma exigência: o exercício quotidiano da coragem e do risco. E quando o medo nos tolhe, e nos negamos a essa prática salutar, perdemos, como parcelas ou como soma, aquela mínima dignidade que distingue a pessoa da rês e o grupo da manada.

E o medo tolheu-nos. Por todo o país só se vêem paralíticos, seres entorpecidos, que renunciaram a viver no terreiro da claridade afirmativa e vegetam no antro da obscuridade negativa. Prudentemente fechado no seu casulo, cada qual olha o vizinho como um inimigo, a quem não fala e a quem não quer ouvir. Falar, é denunciar-se; ouvir, é comprometer-se. E só ao nível da anedota constituímos uma nação. Apenas nesse baixo plano chalaceiro dialogamos e nos sentimos irmãos.

Diário X (23.09.1966)

O escuro que te ilumina - José Riço Direitinho

 É verdade que, depois de termos deixado calcificar a vida (assim como acontece com as torneiras que já não abrem nem fecham, só pingam durante a noite - nao, isto não é uma irónica metáfora sobre o sexo conjugal), precisamos quase sempre de um estímulo para ressuscitar. Então, ou o inventamos ou, sendo sortudos, ele vem ter connosco como uma aparição - talvez trajando de amarelo - que caminha devagar por entre arbustos de um jardim: e a nossa boca e os nossos olhos abrem-se de espanto como se presenciássemos o começo do mundo (que de certeza não terá sido mais milagroso).

Talvez essa oportunidade e a possibilidade desse deslumbramento, dessa fascinação, sejam as únicas coisas que ainda devemos agradecer à vida. O resto é apenas nosso e não serve para muito - produtos domésticos que o tempo cuidará de apagar e de tratar.

O Escuro que te ilumina, José Riço Direitinho 

Bailarinos - texto de Frederico Lourenço

Rapazes e ballet: o preconceito interno


Hoje, dei-me conta de uma tempestade no Instagram, onde sigo muitas personalidades internacionais do mundo do ballet (que é, como sabem os que me lêem, uma das minhas grandes paixões). Num programa televisivo nos EUA, alguém referiu de forma trocista o facto de o Príncipe George (filho de William e Kate) estar a ter aulas de ballet.

Todos sabemos o que está por trás dessa troça: a convicção, ainda mantida por tanta gente em 2019, de que os meninos que aprendem ballet desaprendem a sua «correcta» identidade heterossexual. Ballet - segundo esse estereótipo - é só para meninas e para gays. Pior: o ballet torna os meninos gays.

A ideia por trás desta paranóia é algo que nunca me deixa de surpreender: no fundo, no inconsciente de tanta gente, a homossexualidade masculina parece ser um chamamento tão aliciante que, se um rapaz não for daí desviado, inevitavelmente por aí enveredará. Para isso parece servir o futebol e os outros desportos; para isso parece servir a educação dos pais, que têm de incutir comportamentos certos de masculinidade. Por isso o ballet é um problema. Porque é um problema - continua a ser um problema em 2019 - quando um rapaz decide que quer aprender ballet.

Há bailarinos gays? Há.

Há bailarinos héteros? Há. (Hoje, se calhar, até são a maioria.)

A realidade profissional do ballet mostra-nos que os bailarinos se dividem, tal como o resto da Humanidade, em heterossexuais, homossexuais, bissexuais etc. Não é uma questão que tenha a ver com o ballet em si. Sempre houve os gays como Nureyev; sempre houve os héteros como Baryshnikov; e sempre será assim.

No entanto, é fácil sentirmos pena dos héteros, pelo modo como nunca se livram da fama/suspeita: ainda me lembro da primeira vez que ouvi o nome Mikhail Baryshnikov nos anos 70 e como a pessoa que o mencionou (a professora de ballet da minha irmã) disse que ele fingia ser um grande conquistador de mulheres (que conceito de heterossexualidade, «by the way»...), mas na verdade era um gay encapotado.

Quantos e quantos bailarinos héteros não têm sofrido desse estigma de que a sua heterossexualidade é um capa para esconder outra coisa? E quantos hoje em dia não sobre-compensam com a projecção de uma imagem de macho que quase se torna caricata? Enchem o seu Instagram com fotos de desportos «machos» (futebol, basquete, etc.), com carros de alta velocidade, com motos, com surf - com tudo o que possa desfazer a imagem convencionalmente associada a um homem que dança ballet.

Mas há aqui, a meu ver, uma homofobia subjacente que me incomoda. Tal como me incomoda o argumento das pessoas que querem defender o direito dos meninos a fazer ballet, dizendo que é uma actividade muito «masculina» e muito «atlética». Irrita-me sempre ouvir que «é preciso muita força, é preciso muito músculo», para saltar, para levantar as bailarinas, etc.

O argumento parece ser que, contrariamente ao suposto preconceito, o ballet masculino é, na verdade, algo de intrinsecamente heterossexual. Só porque a sua prática exige o atletismo e a força que, segundo esse ponto de vista, é garantia de heterossexualidade. Como se um homossexual não pudesse ser detentor de tais qualidades: atletismo e força.

Por isso, por muito que eu me solidarize com o bullying a que rapazes e homens heterossexuais são sujeitos por fazerem ballet, não posso deixar de me solidarizar ainda mais com os bailarinos gays.

Pois estes não só sofrem bullying da parte dos preconceituosos e ignorantes fora do universo do ballet. Sofrem bullying cada vez que alguém, no interior do mundo do ballet, vem a público dizer que o facto de um rapaz ou homem dançar ballet «não é o que as pessoas pensam», porque é algo de «muito másculo» e de «muito atlético».

Como se «muito másculo» é «muito atlético» fossem expressões antónimas de «gay».

O que este discurso quer dizer - o que a sobre-compensação dos bailarinos héteros projectando caricatamente imagem de macho quer dizer - é que, dentro do próprio mundo do ballet, o preconceito contra o bailarino gay (ainda) existe.

Os privilégios do verão - José Tolentino de Mendonça

 Não raro, para olharmos a vida na sua amplidão temos de arriscar outros pontos de vista. Vivemos tão em cima dos acontecimentos, tão capturados pela sua intensidade que verdadeiramente não os conseguimos ver. Por isso é importante mudarmos de sítio, alterarmos o ponto de observação e nos distanciarmos, reencontrando assim as condições que a dada altura nos faltam para podermos ver aquilo que, talvez por estarmos demasiado perto, já não avistamos. O tracejado da vida é, como sabemos, repetitivo e habitudinário e desdobra-se como uma confortável constelação de rotinas. Certamente há nisso enormes vantagens, pois desse modo conseguimos realizar uma extensa quantidade de tarefas com um mínimo de esforço e corresponder agilmente, quase de olhos fechados, às exigências do quotidiano. O perigo maior, porém, é quando a força do hábito se substitui à força da vida. E quando o que se ganha em eficácia na gestão do imediato nos impede de escutar o que, em profundidade, nos habita. Nesse sentido, o período do verão pode corresponder a uma oportunidade. Não para um programa de evasão, como se a existência pudesse ser uma coisa em fuga ou uma tarefa inadiável. Mas como uma possibilidade real de encontro - na verdade, de reencontro e audição - da inteireza que somos.

Demócrito, um filósofo pré-socrático do século V a. C., que definia cada ser humano como "um pequeno universo", ensinava que o conhecimento em que assentamos a nossa história corrente ė mais parcial de quanto pensámos (ele, por exemplo, chamava "conhecimento obscuro" ao que é produzido pela vista, ouvido, olfato, gosto e tato). A este saber parcelar, feito de imagens, fragmentos e impressões, ele opunha aquele operado " por um órgão de conhecimento mais subtil", de natureza espiritual. Para aceder a isso, contudo, não tenhamos dúvidas: precisamos de tempo. Precisamos desse bem precioso que por vezes é um privilégio oferecido pelo verão, para sairmos da vertigem das vias rápidas com que resolvemos (ou, melhor dizendo, com que empatamos) internamente a vida e voltarmos aos trilhos pacientes de terra batida, aos prados em aberto, às clareiras silenciosas do bosque, aos promontórios onde se contacta com a imensidão. Platão colocou na boca de Sócrates, na Apologia, que o bem maior concedido ao homem é a possibilidade que este tem de se interrogar sobre si mesmo. Não é fácil perfurar a espessa crosta daquilo que na prática sobrepomos a esta verdade nua que nos reconduz ao essencial. Somos tentados pelo artifício. Usamos as coisas para nos escondermos atrás delas. Atordoamo-nos de pequeninas razões e de grandes desculpas para amortecer o impacto dessa chamada perene.
Foi ainda um autor da antiguidade clássica, Menandro, que cunhou um dístico que soa assim: " Que delícia, um homem que é verdadeiramente um homem!". Trata-se do dever mais longo, desamparado e árduo que nos cabe: ser ou tornar-se aquilo que se é. Sem cumprirmos esse mandato é improvável chegar a dizer do nosso existir, "que delícia!"
Quando o turbilhão das ocupações acidentais parece conflituar e esgotar o espaço daquilo que deveria ser a minha ocupação fundamental, ajuda-me muito recordar o título de uma obra do teólogo Paul Tillich, "A Coragem de Ser". A coragem da aceitação da vida e do risco de viver como um destino, sentindo o chamamento a perseverar num esforço de consciência que me coloque à altura daquilo que significa a minha própria humanidade.

José Tolentino de Mendonça
Expresso, 27 de julho de 2019

Sermão das Lágrimas de São Pedro - Padre António Vieira

(excertos)

Notável criatura são os olhos! Admirável instrumento da natureza! Prodigioso artifício da Providência! Eles são a primeira origem da culpa, eles a primeira fonte da graça. São os olhos duas víboras metidas em duas covas, em que a tentação pôs o veneno, e a contrição a triaga. São duas setas com que o demónio se arma para nos ferir e perder, e são dois escudos com que Deus, depois de feridos; nos repara para nos salvar. Todos os sentidos do homem têm um só ofício; só os olhos têm dois. O ouvido ouve, o gosto gosta, o olfato cheira, o tato apalpa, só os olhos têm dois ofícios: ver e chorar. Estes serão os dois pólos do nosso discurso.

Ninguém haverá, se tem entendimento, que não deseje saber por que ajuntou a natureza no mesmo instrumento as lágrimas e a vista, e por que uniu na mesma potência o ofício de chorar e o de ver? O ver é a ação mais alegre; o chorar a mais triste. Sem ver, como dizia Tobias, não há gosto, porque o sabor de todos os gostos é o ver (Tob. 5, 12); pelo contrário, o chorar é o estilado da dor, o sangue da alma, a tinta do coração, o fel da vida, o líquido do sentimento. Por que ajuntou logo a natureza nos mesmos olhos dois efeitos tão contrários: ver e chorar? A razão e a experiência é esta: ajuntou a natureza a vista e as lágrimas, porque as lágrimas são conseqüência da vista; ajuntou a Providência o chorar com o ver, porque o ver é a causa do chorar. Sabeis por que choram os olhos? Porque veem. 

Catecismo e Literatura - Alberto Manguel

A diferença entre catecismo e literatura é que o catecismo dá-nos respostas e a literatura dá-nos perguntas. Faz-nos pensar sobre as coisas? Apresenta-nos questões. Depois fazemos o que entendermos com elas. Podemos deixá-las de lado ou podemos meditar sobre elas.


Alberto Manguel em entrevista ao Observador.

Si quieres embriaguez, ¡acepta también la resaca! - Hermann Hesse

 "Sé por qué es así. No es el vino que bebí ayer, ni que haya dormido en una mala cama, ni tampoco el tiempo lluvioso. Han aparecido unos demonios y han desafinado una por una todas las cuerdas de mi ser. Ha vuelto el temor, el miedo de las pesadillas infantiles, de los cuentos, del destino de los colegiales. El temor, el acoso de lo inalterable, la melancolía, el tedio. ¡Qué insulso es el mundo! ¡Qué horrible tener que levantarse mañana, volver a comer, volver a vivir! ¿Por qué hemos de vivir? ¿Por qué es el hombre tan tímido y bonachón? ¿Por qué no yacemos desde hace tiempo en el mar?

Ni siquiera ha crecido la hierba. No se puede ser vagabundo y artista y al mismo tiempo un burgués sano y cuerdo. Si quieres embriaguez, ¡acepta también la resaca! Si quieres sol y bellas fantasías, ¡acepta también la suciedad y el hastío! Todo está dentro de ti, el oro y el barro, el deleite y la pena, la risa infantil y la angustia moral. ¡Acéptalo todo, no te aflijas por nada, no intentes rehuir nada! No eres un burgués, tampoco eres un griego, no eres armónico y dueño de ti mismo, eres un pájaro en plena tormenta. ¡Déjala rugir! ¡Déjate llevar! ¡Cuánto has mentido! ¡Cuántas miles de veces, incluso en tus libros y poesías, has fingido ser el armonioso y sabio, el feliz, el iluminado! ¡Lo mismo han fingido ser los héroes al atacar en la guerra, mientras las entrañas temblaban! ¡Dios mío, qué simiesco y fanfarrón es el hombre, sobre todo el artista, sobre todo el poeta, sobre todo yo!"
Como podemos observar, la solución que Hesse encontró ante las “contrariedades” de la vida es en última instancia sencilla: la entrega de lleno y sin reservas a todo lo que se nos presenta, sin conceptos de por medio, sin expectativas, sin ideas previas que tengan como propósito apresar la vastedad de significantes de la existencia pero quizá, por encima de todo, sin la pretensión de querer controlar lo incontrolable.

Mas ninguém sabe como é Deus - António Lobo Antunes

A certa altura há um adulto que pergunta à criança o que está a desenhar. Ela responde que está a desenhar Deus. "Mas ninguém sabe como é Deus"!" - diz-lhe o mais velho. "Quando acabar o desenho já sabem." - respondeu a criança.


Há uma citação que me tem ajudado imenso que é do general Montecuccoli (séc XVII): "é preciso agarrar a oportunidade pelos cabelos mas não esquecer que ela é careca."

António Lobo Antunes

Conto para o meu filho João de cada vez que ele tiver medo - Sérgio Godinho

 CONTO PARA O MEU FILHO JOÃO DE CADA VEZ QUE ELE TIVER MEDO


O João tinha medo de tudo. Mas de tudo mesmo. Porque até as coisas que hoje não lhe causavam medo, lhe iriam certamente causar medo amanhã. Era esse medo que mais o afligia, o medo dos medos desconhecidos.
Tinha também medo de outra coisa: de ser chamado medricas, porque isso era sinal de que todos reparavam no medo que ele tinha de tudo.

“Amanhã'”, disse ele, “Vou agarrar no medo, dar-lhe três voltas, enfiá-lo numa gaveta de um armário velho, comprar uma camioneta, e levar o armário para cima de um monte. E depois pôr umas pedras à volta e deitar fogo ao armário, e deixar o medo arder lá dentro.”

Amanhã, amanhã... Esse dia nunca mais chegava... Se ontem já passou e o hoje nunca deixa de ser hoje... “E, para mais, quem disse que o medo arde, como a madeira dos armários? Pode dar-se o caso de ser à prova de fogo...”
Assim sendo, ver-se-ia apenas no meio das cinzas fumegantes do armário um grande medo muito escuro, com três nós e uns dentes brancos, a rir-se do João. “Eh Eh Eh” (o João tremia só de pensar naquele riso).
Não, o melhor era pegar no armário, meter outra vez o medo numa gaveta, encher as outras gavetas de pesos, comprar a tal camioneta, transportar o armário até um penhasco à beira-mar e, pluf, atirá-lo à água. Com os pesos, o armário ficaria para sempre nas profundezas do oceano, e o medo deixaria de o atormentar. Iria para casa levezinho, assobiando uma canção que antes nunca tinha assobiado, por medo de desafinar.

Mas chegando a casa punha-se a pensar que, se calhar... Este se calhar é que estragava tudo. Se calhar, algum polvo podia passar pelo fundo do oceano e achar curioso ver ali um armário.
“Um armário?”, diria ele curioso.
“Talvez possa encontrar lá dentro umas luvas que me sirvam.” Abriria então uma a uma as gavetas e zás, de uma delas sairia a toda a velocidade o medo, e viria à tona flutuar.
Aí estava ele outra vez, pronto para nadar até à costa e ir vingar-se do João.

O João pensou muito a sério: “Se eu não der cabo deste medo enquanto é tempo, é ele que dá cabo de mim. E se eu o engolisse?”
Não, não era possível, como se pode engolir uma coisa que já está dentro de nós? Sim, porque o medo estava dentro dele. Ele bem o sentia, a apertar-lhe a garganta por dentro, a causar-lhe dores de barriga. Então, pelo contrário, tinha de o atirar todo para fora. “É isso. Atirá-lo todo para fora.” Começou a encher os pulmões de ar e de coragem e depois mandou um berro que fez estremecer a casa. Os gatos fugiram, os canários calaram-se, o avô quase acordou, as plantas fecharam-se e as louças tilintaram: e as telhas juntaram-se umas às outras como se fosse chegar a tempestade.
E o medo?
Ora, o medo, embora não tenha tido medo, olhou para o João com interesse. E o João olhou para o medo, também. Ficaram a olhar de frente um para o outro, como se fossem dois velhos desconhecidos que nunca se tinham visto.
Silêncio e respeito.
E depois o João falou, e disse '”Tu não tens medo de te afogar, não tens medo de te queimar nem tens medo que eu te possa berrar. Tu já és o medo, por que havias de ter medo? E eu só tenho medo de ti, porque penso que tu não fazes parte de mim. Mas tu fazes parte de mim, como os meus ossos e os meus pulmões. Tu és o meu medo, por que é que não havias de fazer parte de mim? A coragem não faz também parte de mim? E o riso e as lágrimas, não o fazem? De maneira que, olha, fica cá dentro e encontra um canto para te sentares. Mas cuidado: de cada vez que abusares vai haver guerra. Vou saltar, correr, espernear, lutar, falar, responder, perguntar, ou, muito simplesmente, pensar.

Silêncio e respeito. O João estava cansado de todo aquele seu discurso. Era um cansaço bom, como aquele que se tem depois de uma festa de anos, ou de um dia inteiro na praia.
Olhou à volta e não viu medo nenhum. Talvez tivesse voado pela janela aberta, ou ardesse para sempre no cimo de um monte. Oucontinuasse no fundo do mar, à espera de um polvo que ali nunca passará.

Sérgio Godinho
in 'O Pequeno Livro dos Medos'

O céu dos escritores somos nós, os leitores - Julieta Monginho

 O céu dos escritores somos nós, os leitores.

No texto, na leitura, estamos todos juntos

          Julieta Monginho, a propósito da morte de Luís Sepúlveda

Às vezes depois de - Fernando Lopes

 Às vezes depois de f*


por amor, ela ficava em silêncio com o olhar vago no vazio, fixando um ponto imaginário algures nos tecto, ou podia até ser que a visão trespassasse a laje e se fosse perder no íntimo espaço de que é feito o céu inatingível. E eu pensava que tal absorção ou suspensão se deveria ao orgasmo, ou até não, e que tal estado era de quem o tinha fingido na bela perfeição da ausência de sentimentos.
Também em silêncio, esperava até que ela regressasse à cama, aos lençóis malditos, e depois perguntava-lhe se estava bem. E claro está, que depois de tal frémito no corpo, a boca paralisa e nada diz, porque o coração ainda lhe bate próximo e deixa-a seca e a razão ausente não reclama o seu lugar.
Depois, o pior que podia fazer, com claro instinto malévolo, era perguntar-lhe se estaria a pensar noutro, no grande cabrão da sua vida. Obviamente ofendida, perguntava-me:
— Caramba, Fernando, que mais é preciso para que vejas?
E eu, que sempre admirei uma mulher que se deita com um homem apesar de saber que, secretamente, sente saudades de outro, ficava conjurado à minha sorte de ter nascido com a propensão de não sentir qualquer amor por mim mesmo, e de saber que aquela pergunta não era para ter resposta.
Devagar, roçava o meu rosto no seu peito, procurando a desculpa fácil através do calor do corpo, esse acto enganador e que nunca é suficiente mas que é o mais fácil de se traçar porque se pensa que o corpo consegue exprimir aquilo que as palavras não resgatam.
Ela rolava para cima de mim e perguntava-me: vamos foder outra vez?
E aquilo que eu não dizia, enquanto a beijava por todo o corpo alcançável e puxava-a para mim apertando-lhe as ancas contra mim era:

«Caramba, que mais é preciso para que eu veja?»

Nascer todas as manhãs - Miguel Torga

Nascer Todas as Manhãs

Apesar da idade, não me acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs.

Miguel Torga, in "Diário (1982)"

E assim sou, fútil e sensível - Bernardo Soares

 Bernardo Soares

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos...

L. do D.

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa: uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados.

s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

  - 310.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos - Bernardo Soares

  Fragmento 202, 14/9/1931 (dactilografado). Livro do Desassossego

    Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vieram, nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do céu amplo, certos retoques de brisa fria que anunciavam o outono. Não era ainda o desverde da folhagem, ou o desprenderem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompanha a nossa sensação da morte externa, porque o há-de ser também a nossa. Era como um cansaço do esforço existente, um vago sono sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah, são tardes de uma tão magoada indiferença, que, antes que comece nas coisas, começa em nós o outono.

     Cada outono que vem é mais perto do último outono que teremos, e o mesmo é verdade do verão ou do estio; mas o outono lembra, por o que é, o acabamento de tudo, e no verão ou no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos. Não é ainda o outono, não está ainda no ar o amarelo das folhas caídas ou a tristeza húmida do tempo que vai ser inverno mais tarde. Mas há um resquício de tristeza antecipada, uma mágoa vestida para a viagem, no sentimento em que somos vagamente atentos à difusão colorida das coisas, ao outro tom do vento, ao sossego mais velho que se alastra, se a noite cai, pela presença inevitável do universo.

     Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do que usou sentimentos e luvas, do que falou da morte e da política local. Como é a mesma luz que ilumina as faces dos santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns terem sido santos e outros usadores de polainas.

     No vasto redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz indolentemente o mundo inteiro, tanto faz os remos como os vestidos das costureiras, e as tranças das crianças louras vão no mesmo giro mortal que os ceptros que figuraram impérios. Tudo é nada, e no átrio do Invisível, cuja porta aberta mostra apenas, defronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que as remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e grandes, que formaram, para nós e em nós, o sistema sentido do universo. Tudo é sombra e pó mexido, nem há voz senão a do som que faz o que [o] vento ergue e arrasta, nem silêncio senão do que o vento deixa. Uns, folhas leves, menos presas de terra por mais leves, vão altas do rodopio do Átrio e caem mais longe que o círculo dos pesados. Outros, invisíveis quase, pó igual, diferente só se o víssemos de perto, faz cama a si mesmo no redemoinho. Outros ainda, miniaturas de troncos, são arrastados à roda e cessam aqui e ali. Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo e tudo o que fomos – lixo de estrelas e de almas – será varrido para fora da casa, para que o que há recomece.

     Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu cérebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anónima de tudo. O outono, sim, o outono, o que há ou o que vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desilusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu esperar e de quê? Já, no que penso de mim, vou entre as folhas e os pós do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fazendo som de vida nas lajes limpas que um sol angular doura de fim não sei onde.

     Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz – tudo isso irá no outono, como os fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as crianças sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma, desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os deuses que tive ao patrão Vasques que também tive, tudo vai no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do outono. Tudo no outono, sim, tudo no outono…

Matemática do Amor - Pastor Flores

 E então ele aconchegou-se melhor nas suas dúvidas e voltou a fazer as contas. Se ele e ela eram como um, ambos seriam apenas metade do que poderiam ser.

Escribir es como drogarse - António Lobo Antunes

“Escribir”, dice Lobo Antunes, “es como drogarse, se empieza por puro placer, y acabas organizando tu vida como los drogados, en torno a tu vicio. Y ésa es mi vida. Hasta cuando sufro lo vivo como un desdoblamiento: el hombre está sufriendo, y el escritor está pensando en cómo aprovechar este sufrimiento para su trabajo.”

Enrique Vila-Matas, in El Mal de Montano, p. 195

Sobre la literatura - Enrique Vila-Matas

Como dice Magris: “Kafka sabía perfectamente que la literatura le alejaba del territorio de la muerte y le permitía comprender la vida, pero dejándole fuera.”.

...y cualquiera que haya leído a Kafka, conoce perfectamente “cuánta angustia excesiva por nada” (que decía Pessoa) hay en la literatura.

In El Mal de Montano, p. 301

www.enriquevilamatas.com

Hemingway por George Steiner

Estou a pensar num trecho do romance "The Sun Also Rises". Este título vem, obviamente do Livro de Eclesiastes. na Bíblia. Chamava-se "Fiesta" na edição inglesa. Dois amigos estão sentados no autocarro e julgam amar-se. Julgam ser inteiramente honestos um com o outro. 

«Atravessámos a floresta para depois subir a encosta, um prado verde e ondulado à nossa frente e montanhas escuras por trás, muito diferentes das montanhas queimadas donde viemos. Eram montanhas arborizadas das quais as nuvens escorregavam. O prado verde estendia-se, separado por vedações, com o branco da estrada a brilhar por entre as árvores, cruzando o prado para Norte. No cimo da encosta vimos os telhados vermelhos e as casas brancas de Burguete dispersas pelo prado. Ao longe, no espinhaço da primeira montanha escura, encontrava-se o telhado cinzento do mosteiro de Roncesvalles. Ali é Roncevaux, disse eu. Onde? Lá ao longe. Onde começam as montanhas. Está frio aqui, disse Bill. Estamos muito alto, disse eu. Pelo menos a 1200 metros. Está um frio horrível, disse Bill.»

Roncevaux é um lugar onde, na canção medieval de Rolando, Rolando e os seus amigos traídos por um deles, são mortos na emboscada dos Sarracenos. A genialidade de Hemingway está no facto de não chegar a dizer isso. Só a palavra "Roncevaux" nos diz que os dois amigos se trairão. A amizade está a chegar ao fim. Depois a repetição. «Está frio, disse o Bill. Está um frio horrível.» Naturalmente, está a falar-se do frio no coração deles. Só um grande artista é capaz de dizer tudo sem dizer nada. A questão é que os meus alunos de Oxford, de Cambridge, os de Genebra e os de Harvard, já não sabem o que significa "Roncevaux". A próxima edição terá de trazer uma nota de rodapé, que liquida tudo. Enquanto no tempo de Hemingway, com o seu vasto público, era um romance muito popular e partiam do princípio que o nome "Roncevaux"... não era preciso explicar. Dentro de pouco tempo o nome "Elsinore" precisará de uma nota de rodapé. Não saberão nada, nem o que é "La Mancha". Isto é assustador.


George Steiner
In, «Of Beauty and Consolation». 2000