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terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Conto para o meu filho João de cada vez que ele tiver medo - Sérgio Godinho

 CONTO PARA O MEU FILHO JOÃO DE CADA VEZ QUE ELE TIVER MEDO


O João tinha medo de tudo. Mas de tudo mesmo. Porque até as coisas que hoje não lhe causavam medo, lhe iriam certamente causar medo amanhã. Era esse medo que mais o afligia, o medo dos medos desconhecidos.
Tinha também medo de outra coisa: de ser chamado medricas, porque isso era sinal de que todos reparavam no medo que ele tinha de tudo.

“Amanhã'”, disse ele, “Vou agarrar no medo, dar-lhe três voltas, enfiá-lo numa gaveta de um armário velho, comprar uma camioneta, e levar o armário para cima de um monte. E depois pôr umas pedras à volta e deitar fogo ao armário, e deixar o medo arder lá dentro.”

Amanhã, amanhã... Esse dia nunca mais chegava... Se ontem já passou e o hoje nunca deixa de ser hoje... “E, para mais, quem disse que o medo arde, como a madeira dos armários? Pode dar-se o caso de ser à prova de fogo...”
Assim sendo, ver-se-ia apenas no meio das cinzas fumegantes do armário um grande medo muito escuro, com três nós e uns dentes brancos, a rir-se do João. “Eh Eh Eh” (o João tremia só de pensar naquele riso).
Não, o melhor era pegar no armário, meter outra vez o medo numa gaveta, encher as outras gavetas de pesos, comprar a tal camioneta, transportar o armário até um penhasco à beira-mar e, pluf, atirá-lo à água. Com os pesos, o armário ficaria para sempre nas profundezas do oceano, e o medo deixaria de o atormentar. Iria para casa levezinho, assobiando uma canção que antes nunca tinha assobiado, por medo de desafinar.

Mas chegando a casa punha-se a pensar que, se calhar... Este se calhar é que estragava tudo. Se calhar, algum polvo podia passar pelo fundo do oceano e achar curioso ver ali um armário.
“Um armário?”, diria ele curioso.
“Talvez possa encontrar lá dentro umas luvas que me sirvam.” Abriria então uma a uma as gavetas e zás, de uma delas sairia a toda a velocidade o medo, e viria à tona flutuar.
Aí estava ele outra vez, pronto para nadar até à costa e ir vingar-se do João.

O João pensou muito a sério: “Se eu não der cabo deste medo enquanto é tempo, é ele que dá cabo de mim. E se eu o engolisse?”
Não, não era possível, como se pode engolir uma coisa que já está dentro de nós? Sim, porque o medo estava dentro dele. Ele bem o sentia, a apertar-lhe a garganta por dentro, a causar-lhe dores de barriga. Então, pelo contrário, tinha de o atirar todo para fora. “É isso. Atirá-lo todo para fora.” Começou a encher os pulmões de ar e de coragem e depois mandou um berro que fez estremecer a casa. Os gatos fugiram, os canários calaram-se, o avô quase acordou, as plantas fecharam-se e as louças tilintaram: e as telhas juntaram-se umas às outras como se fosse chegar a tempestade.
E o medo?
Ora, o medo, embora não tenha tido medo, olhou para o João com interesse. E o João olhou para o medo, também. Ficaram a olhar de frente um para o outro, como se fossem dois velhos desconhecidos que nunca se tinham visto.
Silêncio e respeito.
E depois o João falou, e disse '”Tu não tens medo de te afogar, não tens medo de te queimar nem tens medo que eu te possa berrar. Tu já és o medo, por que havias de ter medo? E eu só tenho medo de ti, porque penso que tu não fazes parte de mim. Mas tu fazes parte de mim, como os meus ossos e os meus pulmões. Tu és o meu medo, por que é que não havias de fazer parte de mim? A coragem não faz também parte de mim? E o riso e as lágrimas, não o fazem? De maneira que, olha, fica cá dentro e encontra um canto para te sentares. Mas cuidado: de cada vez que abusares vai haver guerra. Vou saltar, correr, espernear, lutar, falar, responder, perguntar, ou, muito simplesmente, pensar.

Silêncio e respeito. O João estava cansado de todo aquele seu discurso. Era um cansaço bom, como aquele que se tem depois de uma festa de anos, ou de um dia inteiro na praia.
Olhou à volta e não viu medo nenhum. Talvez tivesse voado pela janela aberta, ou ardesse para sempre no cimo de um monte. Oucontinuasse no fundo do mar, à espera de um polvo que ali nunca passará.

Sérgio Godinho
in 'O Pequeno Livro dos Medos'

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