O DIA DE UMA MULHER DE HOJE, EM LISBOA
“Tome V. uma mulher de hoje, em Lisboa por exemplo, e siga-a durante o seu dia. Ergue-se pela manhã, embrulha-se numa robe de chambre e encontra logo nas simples ordens a dar as mil complicações da civilização. É o candeeiro de gás que tem um escape e que é necessário mandar consertar; um telegrama a expedir por causa de um parente que chega no paquete da Madeira; um recado a uma amiga para combinar a hora a que ambas irão à Câmara ouvir falar o Rufino; depois, tem que organizar o menu, porque há amigos a jantar; arranjar flores da Praça da Figueira, fazer almoçar e seguir os rapazes para o liceu; vigiar a criada que anda a espanejar os bibelots na sala; depois, há ainda o Diário de Notícias a percorrer e o Correio da Manhã a ler, a fechar-se no quarto para escrever a sua correspondência, e por último tratar da questão do criado, que se despediu por birra com o cozinheiro... Só então se pode ocupar da sua toilette, e finalmente vai almoçar. Às duas horas chega a amiga, e, metidas numa tipóia, lá vão ambas para as Câmaras. Aí, sessão tumultuosa, eloquência do Rufino, aplausos, olhadelas aos deputados, tagarelice, rosa divina nos intervalos. Finda a sessão, vai até à Baixa, dá uma volta pela Avenida, entra em várias lojas, sobe à modista, e, à última hora, apressa-se para casa onde a esperam mais cuidados domésticos: é uma nova discussão com o cozinheiro, um prato que é preciso substituir e todas as graves preocupações da toilette para o jantar. Por fim, encontra-se à mesa entre os seus convidados: sorrisos, conversa, discussão sobre política, notícias, cancãs, boatos, maledicência. Os homens acendem os charutos — e seguem todos para o teatro, a ouvir a nova opereta. À uma da madrugada, volta sonolenta para casa: chá, romance para adormecer — e marido roncando ao lado, com um lenço de seda amarrado na cabeça...”
Correspondência de Fradique Mendes, Eça de Queirós
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