Estou a pensar num trecho do romance "The Sun Also Rises". Este título vem, obviamente do Livro de Eclesiastes. na Bíblia. Chamava-se "Fiesta" na edição inglesa. Dois amigos estão sentados no autocarro e julgam amar-se. Julgam ser inteiramente honestos um com o outro.
«Atravessámos a floresta para depois subir a encosta, um prado verde e
ondulado à nossa frente e montanhas escuras por trás, muito diferentes das
montanhas queimadas donde viemos. Eram montanhas arborizadas das quais as
nuvens escorregavam. O prado verde estendia-se, separado por vedações, com o
branco da estrada a brilhar por entre as árvores, cruzando o prado para Norte.
No cimo da encosta vimos os telhados vermelhos e as casas brancas de Burguete
dispersas pelo prado. Ao longe, no espinhaço da primeira montanha escura,
encontrava-se o telhado cinzento do mosteiro de Roncesvalles. Ali
é Roncevaux, disse eu. Onde? Lá ao longe. Onde começam as montanhas.
Está frio aqui, disse Bill. Estamos muito alto, disse eu. Pelo menos a 1200 metros.
Está um frio horrível, disse Bill.»
Roncevaux é um lugar onde, na canção medieval de Rolando, Rolando e os
seus amigos traídos por um deles, são mortos na emboscada dos Sarracenos. A
genialidade de Hemingway está no facto de não chegar a dizer isso. Só a palavra
"Roncevaux" nos diz que os dois amigos se trairão. A amizade está a
chegar ao fim. Depois a repetição. «Está frio, disse o Bill. Está um
frio horrível.» Naturalmente, está a falar-se do frio no coração
deles. Só um grande artista é capaz de dizer tudo sem dizer nada. A questão é
que os meus alunos de Oxford, de Cambridge, os de Genebra e os de Harvard, já
não sabem o que significa "Roncevaux". A próxima edição terá de
trazer uma nota de rodapé, que liquida tudo. Enquanto no tempo de Hemingway, com
o seu vasto público, era um romance muito popular e partiam do princípio que o
nome "Roncevaux"... não era preciso explicar. Dentro de pouco tempo o
nome "Elsinore" precisará de uma nota de rodapé. Não saberão nada,
nem o que é "La Mancha". Isto é assustador.
George Steiner
In, «Of Beauty and Consolation». 2000
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