SOBRE CORCUNDAS E ELEIÇÕES - Léopold Sédar Senghor
Quero contar‐vos uma história africana. Havia numa aldeia remota uma jovem de rosto fino, tensa pele de tantã, voz grave de contralto, mãos de alísios, mãos que curam febres, pálpebras de penugem e de pétalas de aloendro, sobrancelhas secretas e puras como hieróglifos. Os cabelos eram como o fogo a rolar pelo mato à noite. Pérolas brilhavam como estrelas contra a sua pele noturna. Receio já ter utilizado uma ou outra destas imagens em poemas que publiquei enquanto vivia. Perdoem‐me. Inéditas ou não, são imagens que servem na perfeição para descrever a jovem da minha história. Vou chamar‐lhe Vissolela.
Apesar de todas as laboriosas imagens que usei acima para descrever Vissolela, a rapariga não encontrava pretendentes. Porquê? Pois, porque logo que os homens conseguiam afastar os olhos do seu belo rosto davam com a corcunda. Vissolela nascera com um morro de salalé a desfear‐lhe o perfil solene. Definhava ela, escondida a um canto, e entristeciam os pais. Então, certa tarde, chegou à aldeia um forasteiro. Era um homem aprumado, de palavras medidas e justas, olhos fundos e limpos como um céu de verão depois das chuvas. Sendo o primogénito os pais deram-lhe o nome de Nendela.
Nendela viu Vissolela. Viu-a cozinhar, viu-a varrer o terreiro com humilde zelo. Impressionou-o a dignidade daquela mulher, comoveu-o a noite azul do seu coração. Ao fim de alguns dias decidiu falar com os pais da moça. "Quero casar com a vossa filha", disse. O pai estranhou: "Não pode ser. Não temos nenhuma filha escorreita que te possamos entregar." Nendela apontou Vissolela: É aquela que eu quero."
Os pais concordaram, surpresos mas felizes com a sorte da filha. Nendela voltou alguns dias depois com cinco vacas - para o alembamento - e levou a rapariga. Nessa noite Vissolela chorou, um choro tristíssimo, que assustou o marido.
"Sou feia", lamentou-se. "Como podes gostar de mim?"
"Gosto de ti tal como és", assegurou-lhe Nendela. "Gosto tanto de ti que não consigo ver-te sofrer. Se te horroriza a esse ponto a tua corcunda deixa-me ficar eu com ela."
Mal terminou de dizer isto a corcunda passou para as suas costas e Vissolela endireitou-se incrédula, feliz, mulher de altas pernas, tronco esguio, doce pele de melaço. Durante alguns meses o casal foi feliz. Vissolela, porém, transformava-se. Já não gostava de ficar em casa, a cozinhar, a cuidar dos porcos e das galinhas, enquanto o marido ia fazer o serviço da lavra, caçar ou pescar.
Agora Vissolela passava muito tempo a entrançar o cabelo, a perfurar-se, a amaciar a pele com óleo de palma. Passou-se mais algum tempo e Vissolela começou a ser cortejada pelos homens da aldeia. Um deles encantou-a. Era um sujeito de natureza lábil, esbelto mas furtivo, como um guerreiro perdido nos altos agimos do sono. Disse-lhe o jovem: "O que faz uma mulher bela como tu com um aleijado? Deixa o teu marido e vem comigo." Vissolela concordou. Preparava-se para abandonar a sua casa quando Nendela apareceu, vindo da lavra. "Vou-me embora", disse ao marido. "Não suporto mais viver contigo, um aleijado." Nendela olhou-a com o coração desfeito. "Vai então", concordou, "mas não te esqueças de levar a tua corcunda." Ao dizer isto endireitou-se e no mesmo instante a horrível corcunda regressou às costas de Vissolela.
Foi assim que aconteceu.
in O LUGAR DO MORTO - JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
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