O Cágado
O homem era
muito senhor da sua vontade, nunca tinha visto um cágado; contudo, agora estava
a acreditar. Acercou-se mais e viu com os olhos da cara que aquilo era, na
verdade, o tal cágado da zoologia.
O homem que
era muito senhor da sua vontade ficou radiante, já tinha novidades para contar
ao almoço, e deitou a correr para casa. A meio caminho pensou que a família era
capaz de não aceitar a novidade por não trazer o cágado com ele, e parou de
repente. Como era muito senhor da sua vontade, não poderia suportar que a
família imaginasse que aquilo do cágado era história dele, e voltou atrás.
Quando chegou perto do tal sítio, o cágado, que já tinha desconfiado da
primeira vez, enfiou buraco abaixo como quem não quer a coisa.
O homem que
era muito senhor da sua vontade pôs-se a espreitar para dentro e depois de
muito espreitar não conseguiu ver senão o que se pode ver para dentro dos
buracos, isto é, muito escuro. Do cágado, nada. Meteu a mão com cautela e nada.
Tinham sido experimentadas todas as cautelas e os recursos naturais de que um
homem dispõe até ao comprimento do braço e nada.
Então foi
buscar auxílio a uma vara compridíssima, que nem é habitual em varas haver
assim tão compridas, enfiou-a pelo buraco abaixo, mas o cágado morava ainda
muito mais lá para o fundo. Quando largou a vara, ela foi por ali abaixo,
exactamente como uma vara perdida.
Depois de
estudar novas maneiras, a ofensiva ficou de facto submetida a nova orientação.
Havia um grande tanque de lavadeiras a dois passos e ao lado do tanque estava
um bom balde dos maiores que há. Mergulhou o balde no tanque e, cheio até mais
não, despejou-o inteiro para dentro do buraco do cágado. Um balde só já ele
sabia que não bastava, nem dez, mas quando chegou a noventa e oito baldes e que
já faltavam só dois para cem e que a água não havia meio de vir ao de cima, o
homem que era muito senhor da sua vontade pôs-se a pensar em todas as espécies
de buracos que possa haver.
- E se eu
dissesse à minha família que tinha visto o cágado? - pensava para si o homem
que era muito senhor da sua vontade. Mas não! Toda a gente pode pensar assim
menos eu, que sou muito senhor da minha vontade.
O maldito sol
também não ajudava nada. Talvez que fosse melhor não dizer nada do cágado ao
almoço. A pensar se sim ou não, os passos dirigiam-se involuntariamente para as
horas de almoçar.
- Já não se
trata de eu ser um incompreendido com a história do cágado, não; agora trata-se
apenas da minha força de vontade. É a minha força de vontade que está em prova,
esta é a ocasião propícia, não percamos tempo! Nada de fraquezas!
Ao lado do
buraco havia uma pá de ferro, destas dos trabalhadores rurais. Pegou na pá e
pôs-se a desfazer o buraco. A primeira pazada de terra, a segunda, a terceira,
e era uma maravilha contemplar aquela majestosa visibilidade que punha os
nossos olhos em presença do mais eficaz testemunho da tenacidade, depois dos
antigos. Na verdade, de cada vez que enfiava a pá na terra, com fé, com
robustez, e sem outras intenções a mais, via-se perfeitamente que estava ali
uma vontade inteira; e ainda que seja cientificamente impossível que a terra
rachasse de cada vez que ele lhe metia a pá, contudo era indiscutivelmente esta
a impressão que lhe dava. Ah, não! Não era um vulgar trabalhador rural. Via-se
perfeitamente que era alguém muito senhor da sua vontade e que estava por ali
por acaso, por imposição própria, contrafeito, por necessidade do espírito, por
outras razões diferentes das dos trabalhadores rurais, no cumprimento de um
dever, um dever importante, uma questão de vida ou de morte - a vontade.
Já estava na
nonagésima pazada de terra; sem afrouxar, com o mesmo ímpeto da inicial, foi
completamente indiferente por um almoço a menos. Fosse ou não por um cágado, a
humanidade iria ver solidificada a vontade de um homem.
A mil metros
de profundidade a pino, o homem que era muito senhor da sua vontade foi
surpreendido por dolorosa dúvida - já não tinha nem a certeza se era a
quinquagésima milionésima octogésima quarta. Era impossível recomeçar, mais
valia perder uma pazada.
Até ali não
havia indícios nem da passagem da vara, da água ou do cágado. Tudo fazia crer
que se tratava de um buraco supérfluo; contudo, o homem era muito senhor da sua
vontade, sabia que tinha de haver-se de frente com todas as más impressões. De
facto, se aquela tarefa não houvesse de ser árdua e difícil, também a vontade
não podia resultar superlativamente dura e preciosa.
Todas as
noções de tempo e de espaço, e as outras noções pelas quais um homem constata o
quotidiano, foram todas uma por uma dispensadas de participar no esburacamento.
Agora, que os músculos disciplinados num ritmo único estavam feitos ao que se
quer pedir, eram desnecessários todos os raciocínios e outros arabescos
cerebrais, não havia outra necessidade além da dos próprios músculos.
Umas vezes a
terra era mais capaz de se deixar furar por causa das grandes camadas de areia
e de lama; todavia estas facilidades ficavam bem subtraídas quando acontecia
ser a altura de atravessar uma dessas rochas gigantescas que há no subsolo. Sem
incitamento nem estímulo possível por aquelas paragens, é absolutamente
indispensável recordar a decisão com que o homem muito senhor da sua vontade
pegou ao princípio na pá do trabalhador rural para justificarmos a intensidade
e a duração desta perseverança. Inclusive, a própria descoberta do centro da
Terra, que tão bem podia servir de regozijo ao que se aventura pelas entranhas
do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao homem que era muito
senhor da sua vontade. O buraco do cágado era efectivamente interminável. Por
mais que se avançasse, o buraco continuava ainda e sempre. Só assim se explica
ser tão rara a presença de cágados à superfície devido à extensão dos
corredores desde a porta da rua até aos aposentos propriamente ditos.
Entretanto, cá
em cima na terra, a família do homem que era muito senhor da sua vontade, tendo
começado por o ter dado por desaparecido, optara, por último, pelo luto
carregado, não consentindo a entrada no quarto onde ele costumava dormir todas
as noites.
Até que uma
vez, quando ele já não acreditava no fim das covas, já não havia, de facto,
mais continuação daquele buraco, parava exactamente ali, sem apoteose, sem
comemoração, sem vitória, exactamente como um simples buraco de estrada onde se
vê o fundo ao sol. Enfim, naquele sítio nem a revolta servia para nada.
Caindo em si,
o homem que era muito senhor da sua vontade pediu-lhe decisões, novas decisões,
outras; mas ali não havia nada a fazer, tinha esquecido tudo, estava despejado
de todas as coisas, só lhe restava saber cavar com uma pá. Tinha, sobretudo,
muito sono, lembrou-se da cama com lençóis, travesseiro e almofada fofa, tão
longe! Maldita pá! O cágado! E deu com a pá com força no fundo da cova. Mas a
pá safou-se-lhe das mãos e foi mais fundo do que ele supunha, deixando uma
greta aberta por onde entrava uma coisa de que ele já se tinha esquecido há
muito - a luz do sol. A primeira sensação foi de alegria, mas durou apenas três
segundos, a segunda foi de assombro: teria na verdade furado a Terra de lado a
lado?
Para se
certificar alargou a greta com as unhas e espreitou para fora. Era um país
estrangeiro; homens, mulheres, árvores, montes e casas tinham outras proporções
diferentes das que ele tinha na memória. O sol também não era o mesmo, não era
amarelo, era de cobre cheio de azebre e fazia barulho nos reflexos. Mas a
sensação mais estranha ainda estava para vir: foi que, quando quis sair da
cova, julgava que ficava em pé em cima do chão como os habitantes daquele país
estrangeiro, mas a verdade é que a única maneira de poder ver as coisas
naturalmente era pondo-se de pernas para o ar...
Como tinha
muita sede, resolveu ir beber água ali ao pé e teve de ir de mãos no chão e o
corpo a fazer o pino, porque de pé subia-lhe a sangue à cabeça. Então, começou
a ver que não tinha nada a esperar daquele país onde nem sequer se falava com a
boca, falava-se com o nariz.
Vieram-lhe de uma vez todas as
saudades da casa, da família e do quarto de dormir. Felizmente estava aberto o
caminho até casa, fora ele próprio quem o abrira com urna pá de ferro.
Resolveu-se. Começou a andar o buraco todo ao contrário. Andou, andou, andou;
subiu, subiu, subiu...
Quando chegou
cá acima, ao lado do buraco estava uma coisa que não havia antigamente - o
maior monte da Europa, feito por ele, aos poucochinhos, às pazadas de terra,
uma por uma, até ficar enorme, colossal, sem querer, o maior monte da Europa.
Este monte não deixava ver nem a cidade onde estava a casa da família, nem a estrada que dava para a cidade, nem os arredores da cidade que faziam um belo panorama. O monte estava por cima disto tudo e de muito mais.
O homem que
era muito senhor da sua vontade estava cansadíssimo por ter feito duas vezes o
diâmetro da Terra. Apetecia-lhe dormir na sua querida cama, mas para isso era
necessário tirar aquele monte maior da Europa, de cima da cidade, onde estava a
casa da sua família. Então, foi buscar outra pá dos trabalhadores rurais e
começou logo a desfazer o monte maior da Europa. Foi restituindo à Terra, uma
por uma, todas as pazadas com que a tinha esburacado de lado a lado. Começavam
já a aparecer as cruzes das torres, os telhados das casas, os cumes dos montes
naturais, a casa da sua família, muita gente suja de terra, por ter estado
soterrada, outros que ficaram aleijados, e o resto como dantes.
O homem que
era muito senhor da sua vontade já podia entrar em casa para descansar, mas
quis mais, quis restituir à Terra todas as pazadas, todas. Faltavam poucas,
algumas dúzias apenas. Já agora valia a pena fazer tudo bem até ao fim. Quando
já era a última pazada de terra que ele ia meter no buraco, portanto a primeira
que ele tinha tirado ao princípio, reparou que o torrão estava a mexer por si,
sem ninguém lhe tocar; curioso, quis ver
porque era - era o cágado.
In Contos e Novelas, José de
Almada-Negreiros, 1970 Editorial Estampa