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terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Os rivais - Martin Armstrong

           O comboio estava a cerca de três quartos de hora do seu destino e circulava a uns bons cem à hora quando Mr Harraby-Ribston, um próspero homem de negócios, se levantou do assento, retirou a mala da grelha de bagagem por cima de si e atirou-a pela janela. O único outro ocupante da cabina, um homem baixo e magro, um tal Mr Crowther, tinha levantado o olhar do livro que estava a ler, quando o companheiro de viagem se levantou, e viu o que tinha acontecido.

Depois, os dois homens olharam-se friamente e Mr Crowther prosseguiu a leitura, enquanto Mr Harraby-Ribston reocupou o lugar e ficou sentado durante um bocado com uma respiração forte e corado por causa do esforço. A forma como o outro tinha olhado para ele tinha-o deixado bastante preocupado, porque parecera não ter revelado a mínima reacção. Não parecera alarmado, nem surpreendido, nem sequer minimamente interessado e isso era, não haja dúvida, verdadeiramente extraordinário. A curiosidade de Mr Harraby-Ribston tinha sido fortemente estimulada. E não só. Ele era por natureza um homem sociável, conversador e tinha a certeza de que o seu acto teria infalivelmente dado início a uma conversa.  Mas tal não tinha acontecido e, sendo assim, ele não tinha tido a oportunidade de explicar o seu acto e começou a sentir que tinha de certeza sido considerado maluco pelo companheiro de viagem ou, pior ainda, talvez ele tivesse concluído que a mala continha um cadáver, e nesse caso iria provavelmente denunciá-lo à polícia quando chegassem ao destino e seguir-se-ia uma série de problemas e de investigações humilhantes. Eram estes os pensamentos e as conjecturas que perturbavam o cérebro de Mr Harraby-Ribston, retirando-lhe a satisfação e o entusiasmo que era suposto sentir.
Mr Crowther, por sua vez, estava também perturbado. Apesar de fingir estar a ler, ele estava, de facto, completamente incapaz de o fazer. Apesar de toda aquela aparência de apatia, o estranhíssimo facto de ter visto um próspero cavalheiro a atirar a mala pela janela de comboio em andamento tinha-o surpreendido profundamente. Contudo, conseguiu não mostrar a sua surpresa. O colega devia estar obviamente à espera que ele reagisse imediatamente e, por isso, Mr Crowder fez questão de não mostrar qualquer tipo de reacção. Fosse aquilo uma partida ou não fosse, Mr Crowder considerou-o uma injustificável infringir da sua privacidade. Foi mais ou menos a mesma coisa que o fulano ter rebentado um saco de papel para o fazer dar um salto com o susto. Portanto, ele não iria saltar, nem iria dar azo a coscuvilhices. Se o fulano achava que o facto de ter atirado uma mala pela janela faria dele alguém importante, pois, estava bem enganado.
Mas Mr Harraby-Ribston chegou a um ponto em que ou falava ou rebentava e, optando pela segunda alternativa, exclamou:
– Desculpe-me incomodá-lo, mas tenho que lhe dizer que me surpreendeu.
Mr. Crowder levantou lentamente o olhar do livro e disse:
– Surpreendi-o? Ver alguém a ler no comboio surpreende-o?
– Não, não! – disse Mr Harraby-Ribston. – Não me referia a isso. O que me surpreendeu foi o facto de o senhor não ter ficado surpreendido quando eu atirei a minha mala pela janela.
– A sério! Isso surpreendeu-o? O senhor surpreende-se com pouca coisa.
– Quanto a isso não sei. Mas de certeza absoluta, meu caro senhor, é no mínimo algo pouco usual. Sou capaz de apostar que nunca viu um homem atirar uma mala pela janela de um comboio em andamento.
Mr. Crowder reflectiu:
– Não sei se já vi ou não; mas, se bem me lembro, nunca vi um homem comer um nabo cru no comboio ou dançar a Highland Fling enquanto a família está a rezar. E depois? Se fosse a ficar surpreendido por dá cá aquela palha, não faria mais nada na vida do que surpreender-me com trivialidades.
– E acha que é uma trivialidade alguém atirar uma mala pela janela de uma carruagem?
– Completamente – disse Mr Crowder, afundando o olhar no livro que estava a ler.
– Então o que é para si, se me permite perguntar-lhe – disse o outro, aparentemente ofendido, – um acto que não seja trivial?
Mr Crowder encolheu os ombros penosamente:
– Talvez eu não achasse o seu acto trivial se a mala fosse minha.
– Estou a ver. Considera-se mais importante do que eu.
– Não foi isso que eu disse, mas considero que a minha mala é mais importante do que a sua, e com isto não me refiro à qualidade do cabedal, mas apenas ao facto de que eu sou eu e o senhor é um completo estranho.
– E o que os desconhecidos possam fazer não lhe interessa.
– Apenas se o que fizerem me implicar.
– Bem, – disse Mr Harraby-Ribston. – Eu deveria certamente ter pensado que quando atirei a mala pela janela poderia não ter qualquer implicação…
– Nenhuma! – disse Mr Crowther friamente.
– Isso só mostra como as pessoas são diferentes – retorquiu Mr Harraby-Ribston. – Porque se tivesse sido o senhor a atirar a sua mala pela janela, eu teria ficado extremamente curioso para saber por que o fez.
– Deduzo que o senhor esteja ansioso para me dizer por que o fez! – replicou Mr Crowder com uma enorme indiferença.
– Não, se isso não o interessar, apesar de que, devo dizê-lo, acho difícil de acreditar que haja alguém que não esteja interessado em saber por que o fiz.
Fez uma pausa, mas Mr Crowther não respondeu; pelo contrário, preparou-se para retomar a leitura do seu livro. Para evitar que ele o fizesse, Mr Harraby-Ribston começou a falar sem parar:
– O cerne da questão é que eu acabei de abandonar, há uma hora e meia, a casa e a esposa e quero começar uma vida nova, e a razão pela qual atirei a mala pela janela foi apenas porque de repente me apercebi que trazia nela alguma da minha vida anterior comigo. Roupas, escova do cabelo e coisas que remetem para a vida que tinha; e quis livrar-me de tudo. Daí ao meu acto tão inusual. Já não sou um miúdo, admito; sou um homem com quase cinquenta anos, estive casado durante vinte e um anos e, apesar disso, aqui estou, a começar uma nova vida. Então, isto pode bem parecer-lhe uma coisa extraordinária para fazer.
– Pelo contrário, – disse Mr Crowther, – nada pode ser mais natural.
Mr Harraby-Ribston pareceu algo surpreendido:
– Natural? Acha que é natural? Tenho de admitir que o senhor me surpreende.
– Parece-me um homem muito dado a surpresas – disse Mr Crowther.
– Já o senhor, de facto, pode orgulhar-se de não haver nada que o surpreenda.
– Não é bem assim! – replicou Mr Crowder. –  A questão é que, penso eu, nós os dois ficamos surpreendidos com coisas diferentes. O senhor disse-me que esteve casado durante vinte e um anos e esperava que eu tivesse ficado surpreendido por me ter dito que estava a abandonar a sua mulher. Mas, meu caro senhor, não acho nada de surpreendente nisso. O que me surpreende é que tenha demorado tanto tempo a fazê-lo.
Mr Harraby-Ribston pareceu reflectir e, por fim, disse:
– Devo concluir que o senhor não é casado.
– Já não – respondeu Mr Crowder.
– Já não? Quer dizer então que esteve casado e que deixou a sua mulher?
– Não é bem isso. Abandonar a mulher implica abandonar o lar, e isso estava fora de questão. O meu lar para mim é tudo; uma casa bonita, um jardim cuidado, e duplamente bonito, agora que o tenho só para mim.
– Isso significa que pôs a sua mulher fora de casa?
– Não, não! Isso teria acarretado uma série de situações desagradáveis.
– Então o que é que o senhor fez? – Perguntou Mr Harraby-Ribston, a morrer de curiosidade.
O outro ondulou a mão no ar, com satisfação:
– Há outras maneiras de fazer as coisas, maneiras mais simples.
– Gostaria de saber quais! – disse Mr Harraby-Ribston.
– Não me parece que o meu método tenha a ver com os seus.
– Mas por que não? – Mr Harraby-Ribston estava a rebentar de curiosidade.
– Por que não? Bem, o meu método requer … como deverei dizê-lo? Ponderação, tacto e um plano muito cuidadoso.
– E pensa que eu não sou capaz disso?
– Bem – disse Mr Crowder, – eu devia ter dito que ponderação não é o seu ponto forte; e o seu desejo premente de chamar a atenção dos outros – isso, se tivesse usado o meu método, poderia colocá-lo numa posição muito desconfortável.
– O senhor está a interessar-me imenso – disse Mr Harraby-Ribston. – Vamos, por favor, diga-me lá o que fez.
Mr Crowther pareceu hesitar e depois decidir-se:
– Se eu lho contar, espero que não me acuse de o ter querido surpreender. Nunca tive a mais pequena vontade de surpreender quem quer que seja. Note, por favor, que eu não forcei a informação. Se não tivesse falado comigo, teríamos viajado em completo silêncio. Tenho aqui um livro que me está agradar imenso e se o senhor não me tivesse arrastado para a conversa…
– Ok! Ok! – disse Mr Harraby-Ribston, já a atingir um perigoso ponto de excitação. – concordo, concordo completamente. E garanto-lhe que vou dar o meu melhor para não parecer nem um bocadinho surpreendido.
– Bem – disse Mr Crowther, – o que fiz foi simplesmente isto. Desculpe se lhe parecer pouco sensacional, e lembre-se, por favor, que ficarei ressentido se notar a mínima expressão de espanto da sua parte. Bem, como estava a dizer, eu simplesmente matei a minha mulher.
Mr Harraby-Ribston acolheu a revelação de forma notoriamente bem. Estremeceu, é verdade, e ficou um pouco pálido, mas rapidamente recuperou a solidez:
– Obrigado – disse ele, – e permita-me dizer-lhe como apreciei a sua franqueza. De facto sinto-me tentado a ser igualmente franco consigo. Tenho de confessar, então, que na verdade eu não deixei a minha mulher, pela simples razão de que sou solteiro. Cultivo vegetais em larga escala e uma vez por semana venho a Londres em negócios. Quanto à questão da mala, tenho alguns amigos que moram no local por onde passámos há alguns quilómetros atrás e, todas as semanas, eu encho uma mala (uma mala muito velha, como deve ter reparado) com vegetais, trago-a comigo e atiro-a pela janela da carruagem quando o comboio passa pela casa deles. A mala rola pelo aterro e pára mesmo junto às grades do jardim deles. É um método primitivo, eu sei, mas poupa-nos os portes do correio e o senhor não faz ideia da quantidade de conversas interessantes que provoca com os meus companheiros de viagem. O senhor, se me é permitido dizê-lo, não é excepção.

MARTIN ARMSTRONG
In 20th Century English Short Stories
Ed. By Tina Pierce and Edward Cochrane
Longman (1999)







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