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terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Observações Ferroviárias - Julio Cortazar

     O despertar da senhora de Cinamomo não é alegre, pois ao meter os pés nas pantufas descobre que estas se encheram de caracóis. Armada com um martelo, a senhora de Cinamomo começa a esmagar os caracóis; percebe depois a necessidade de atirar as pantufas para o lixo. Com tal intenção, desce até à cozinha e distrai-se a conversar com a mucama *.

    - A casa vai ficar tão vazia, agora que a Ñata se foi embora.
    - Sim, senhora – diz a mucama.
    - Que concorrida a estação, ontem à noite. Todos os corredores cheios de gente. A Ñata tão emocionada.
    - Partem muitos comboios – diz a mucama.
    - Isso, 'nha filhita. O caminho-de-ferro chega a todos os lados.
    - É o progresso – diz a mucama.
    - Os horários tão certos. O comboio saía às oito e um, e saiu exactamente às oito e um, e ia cheio.
    - Convém – diz a mucama.
    - Que lindo o compartimento que calhou à Ñata, havias de ver. Todo com barras douradas.
    - Seria de primeira – diz a mucama.
    - Uma parte fazia como que um balcão e era de material plástico transparente.
    - Que coisa – diz a mucama.
   - Iam apenas três pessoas no compartimento, todas com assento reservado, uns cartõezinhos tão bonitos. À Ñata calhou-lhe o da janela pequena, do lado das barras douradas.
    - Não me diga – diz a mucama.
    - Estava tão contente, podia assomar ao balcão e regar as plantas.
    - Havia plantas? – diz a mucama.
    - As que crescem entre as vias. Pede-se um jarro de água e regam-se. A Ñata, a seguir, pediu um.
    - E trouxeram-lho? – diz a mucama.
    - Não – diz tristemente a senhora de Cinamomo, atirando para o lixo as pantufas cheias de caracóis mortos.

* mucama – servente, criada de servir (América)

CORTÁZAR, Julio, Un Tal Lucas

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